A Vida dos Livros

De 9 a 15 de maio de 2016.

«A Garça e a Serpente» da autoria de Francisco Costa (Parceria António Maria Pereira, 1943), passado ao cinema por Arthur Duarte (1952), é um romance de época que alcançou assinalável êxito e merece ser posto em confronto com obras de temática próxima, de Bernanos e Mauriac.

QUE ROMANCISTA?

Francisco Costa (1900-1987) tem sido considerado no panorama literário do século XX como um «romancista católico», em virtude da temática dos seus romances e da sua atitude pessoal. Quem se debruçou atentamente sobre a sua obra tem preferido centrar-se, porém, na crítica de tal classificação, por demasiado simplificadora e muito pouco fiel relativamente às preocupações do romancista. Para uns o romancista tocaria demasiadamente temas delicados e pouco ortodoxos (o pecado, a infidelidade conjugal), mais preocupado em se ocupar dos dramas humanos, do que em fazer apologia confessional. De facto, bom conhecedor da obra de autores com posições fundamentais semelhantes à sua, como Georges Bernanos (em «Journal d’un Curé de Campagne») ou François Mauriac (em «Thérèse Desqueyroux»), o escritor conhecia bem os perigos de uma opção moralista ou edificante, pouco condizente com a exigência crítica do romance moderno. Nesse sentido, não têm também razão os que consideram a sua produção «demasiado católica». Pode, pois, dizer-se que, mesmo sem fugir à questão religiosa, como acontece claramente, em «A Garça e a Serpente», o autor tem uma preocupação especial em tratar de temas atuais, sem procurar tornar idílico o que de facto não pode ser. É verdade que, pelos temas e pela atitude, Francisco Costa é muito diferente de um Joaquim Paço d’Arcos, mas em ambos se nota o conhecimento e uma certa admiração pelo naturalismo e pelo realismo, caldeados pela distância relativamente a temas de escândalo. Há, contudo, em ambos a preocupação de compreender uma sociedade em mudança, incapaz de aceitar uma qualquer atitude complacente ou imobilista… Se não oferece dúvidas a posição conservadora e crítica relativamente às audácias modernistas (apesar de uma breve aproximação a Fernando Pessoa em determinado momento da vida do também poeta) do romancista, o certo é que a leitura à distância de mais de setenta anos de «A Garça e a Serpente» permite-nos tomar contacto com o confronto, numa sociedade como era a portuguesa, entre o mundo que se abria às mudanças, por um lado, e uma mentalidade fechada, protegida e algo complacente, confrontada com os novos ventos da História, por outro. É verdade que o drama ocorre contemporaneamente à I Grande Guerra, mas são já os problemas que se anunciarão depois de 1945 a ditar a sua influência.

 

O SENTIDO DO ENREDO

Albertina e Maria Ana são duas personalidades contrastantes e muito diferentes, perante as quais Manuel se sente atraído. Sintomaticamente Arthur Duarte escolherá Teresa Cazal para o papel de Albertina Miranda, a insinuante serpente; e Carmen Dolores para Maria Ana Albalonga, a doce garça; cabendo a Rogério Paulo ser Manuel da Cunha e Silva. O protagonista é um bancário melancólico, cético e descrente, que vai para África e vê-se envolvido nos efeitos da grave crise económica e nas suas repercussões em Portugal, pelo que assistimos à evolução da roda da fortuna, bem como ao desmoronar de algumas supostas certezas económicas. Há encontros e desencontros pessoais, afetivos e amorosos; paixões, contradições, traições, fraquezas e forças… E o sucesso da obra fica a dever-se a esse conjunto de ingredientes que prende os leitores e que dá verosimilhança a um romance do seu tempo… A Francisco Costa poderemos, porém, aplicar, com as devidas distâncias, o que um dia foi dito relativamente a François Mauriac. André Gide apontou o dedo ao facto de a etiqueta de romancista católico ser, a um tempo, perigosa e perturbadora. E Roger Martin du Gard dizia dar-lhe vontade de rir a etiqueta aposta ao romancista, uma vez que não há qualquer outra obra, de um ateu ou de um agnóstico, que dê tanta importância ao pecado como no caso de Mauriac.… E este dizia: «sou romancista, sou católico: é aí que está o conflito; acredito que seja feliz um romancista por se dizer católico, mas estou também seguro que é muito perigoso para um católico ser romancista». Afinal, «o destino de cada um leva-nos à luta entre a carne e a Graça». É esta luta que encontramos no atribulado percurso de Manuel da Cunha e Silva, até se desatarem os diversos e intrincados nós que a vida vai reservando aos protagonistas da trama. 

O romancista, que começou como poeta, foi bibliotecário-arquivista na Biblioteca Municipal de Sintra e dirigiu os serviços administrativos de uma cooperativa de viticultores de Colares, sendo sempre um apaixonado de Sintra. «Desço ao campo, dia-a-dia, levando os montes comigo / E a meu modo cavo e lavro, para ter o meu pão de trigo». Além de «A Garça…», que foi prémio Eça de Queiroz, publicou «Primavera Cinzenta», «Revolta do Sangue», «Cárcere Invisível» (laureado como o Prémio Ricardo Malheiros da Academia das Ciências), além de trilogia «Em Busca do Amor Perdido», «Escândalo na Vila» e «Promontório Agreste». No campo do ensaio, e confirmando uma preocupação em dar ao romance uma dimensão naturalista, Francisco Costa escreveu «Realismo Integral em Romance («Itinerarium») e «Essência e Existência do Romance» , onde partilha as preocupações fundamentais que tem e que não são intrínseca e primordialmente confessionais. Se dúvidas houvesse, ao lermos «A Garça e a Serpente» bem como o «Cárcere Invisível», torna-se claro que o que preocupa o romancista é a procura das características pessoais dos protagonistas que escolheu e a que procura dar uma especial densidade humana. «Forte sem crueza, puro sem falso pudor (…), não ignorando que a vida é feita de luz e de sombras»… São essas luzes e sombras que encontramos a cada passo. Ao seguirmos o percurso de Manuel, pleno de escolhos e de incertezas, de dúvidas e fracassos, percebemos que o romancista procura usar a matéria-prima da vida, em vez de qualquer idealização dela. São o pecado e a Graça que se encontram – e o certo é que a conversão cristã do protagonista surge como um processo e como uma iluminação. Razão e fé entrechocam-se, completam-se, aproximam-se e afastam-se… Manuel confessa na Universidade Católica de Friburgo, ao fechar do pano: «aos quarenta anos, a vocação religiosa tem um passado de nuvens; e enquanto estas se não desfazem há perigo de tempestade. No fundo, porém, estou calmo; e perdi, quase por completo, aquela desconfiança de mim próprio que me inutilizou para a vida no mundo»… O ponto é que esta placidez contrasta com uma encruzilhada de acontecimentos e de incompreensões que povoam todo o romance e a que o protagonista procura responder, primeiro com frieza, depois com generosidade, mas sempre contando com as nuvens da dúvida e da perplexidade, em nome da dignidade humana…  

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença
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