A Vida dos Livros

de 9 a 15 de junho de 2014

«Portugal na Queda da Europa» de Viriato Soromenho-Marques (Temas e Debates, 2014) constitui uma oportuna e atualíssima reflexão sobre o presente e o futuro da União Europeia e do velho continente, num sério e fundamentado apelo crítico à cidadania ativa.

A MEMÓRIA TRÁGICA EUROPEIA
As celebrações dos setenta anos do desembarque da Normandia, no dia D, obrigam a invocar a memória da guerra e a tirar conclusões para o presente de um tempo trágico que determinou a tomada de consciência de que a paz se constrói não apenas com armistícios, mas com a criação de elos estáveis de natureza política, económica, social e cultural que se traduzam em instituições duráveis, legítimas e respeitadas. Longe da paz dos cemitérios, do que se trata é de compreender que os conflitos apenas podem ser regulados e superados pela defesa de interesses e valores comuns, mercê de equilíbrios entre poderes, sem iludir as diferenças e entendendo as complementaridades. Viriato Soromenho-Marques (V.S.M.) tem refletido e estudado sobre a questão europeia, sem ilusões e partindo de uma perspetiva crítica que merece ser considerada e aprofundada. Numa lógica europeísta, o ensaísta sabe que a cidadania não pode limitar-se a seguir as inércias e as perspetivas instaladas. Se a crise fez subir a crispação, o medo e a desconfiança, impõe-se inverter essa tendência, sob pena de prevalecer a irracionalidade, o radicalismo e a xenofobia. A inteligência crítica tem de ser cultivada, como no-lo tem ensinado Eduardo Lourenço, ao ler os velhos mitos nacionais, não como motivos de regresso impossível ao passado, mas como incentivos à sua renovação emancipadora. O espírito europeu de Karl Jaspers (liberdade, história e ciência) deve assentar no diálogo como instrumento fundamental de procura da verdade e dos interesses comuns. Como salienta V.S.M., a atual situação europeia é complexa e incompatível com simplificações. A crise continental radica-se no egoísmo paroquial e numa perigosa fragmentação, com ausência de uma legitimidade democrática, que compreenda que a Europa completa a lógica histórica dos Estados, que, por si só, não responde aos problemas atuais. Se o Estado-nação continua a existir, a verdade é que se tornou mais mediador, reclamando uma democracia supranacional, como fator de paz, desenvolvimento e diversidade. «A crise europeia é uma crise sem sujeito» – o que a torna absurda e bloqueada. Quando o ensaísta fala de uma «doença autoimune», parte, assim, de um paradoxo, no âmbito do qual as opiniões públicas julgam encontrar soluções em movimentos contraditórios do «salve-se quem puder», que apenas contribuem para agravar a doença geral – autocondenando-se todos ao suicídio. «O corpo vacila, mas ainda não se autodespedaçou». E se há um clamor contra os mercados, a verdade é que o comércio apenas ocupa o espaço que lhe foi deixado pelo vazio da política no mais nobre dos sentidos. Hermann Broch falou, assim, do perigoso vazio de valores que alimenta e justifica os sonâmbulos (wert-vakuum»). De facto, o poder democrático deixou de exercer a regulação sobre o poder económico. «Os Estados (…) abdicaram do poder que os cidadãos e os povos lhes confiaram, e depositaram-no nas forças poderosas, e nem sempre cegas ou anónimas, dos mercados». 

UMA UNIÃO LIVRE E SOBERANA
A lógica liberal não foi devidamente compreendida no sentido constitucional e de respeito pela autonomia individual e pela dignidade da pessoa humana e foi confundida com o espontaneísmo do sucesso fácil e imediato, com o agravamento chocante das desigualdades e o enfraquecimento da coesão social e económica. Não se esqueça que a mentalidade «yuppie» (do ganho imediato, das fortunas fulgurantes, da idolatria do dinheiro e das economias de casino) conduziu à falência do Lehman Brothers, à prisão de Bernard Madoff e a tudo o mais que temos visto… As políticas públicas europeias revelaram-se impotentes para corrigir «a desmesura e o abuso dos mercados». E o mal não está no mercado, que naturalmente existe nas sociedades livres, mas na indiferença e na demissão da política. Em lugar de ser uma União de Estados livres e soberanos, a União Europeia tornou-se uma «amálgama de países», sendo os tratados considerados como «lei facultativa». Falta um Tesouro europeu e uma União Económica que complete a organização monetária. A nova noção de soberania terá de ser, por isso, partilhada sob pena de se perder e adulterar. O Tratado Orçamental e as troikas estão distantes do método comunitário, a que temos de regressar, e que deve ser privilegiado, sem prejuízo de ser correta a necessidade de prever um caminho para as convergências social e económica. O endividamento dever ser drasticamente limitado e tem de haver caminhos realistas e diversificados para o conseguir. A disciplina orçamental tem de ser a regra. Os problemas não se solucionam com despesa pública desregrada. Em vez de haver um diretório ou um «soberano» alemão, é indispensável haver uma Europa europeia. «A hegemonia de Berlim é defensiva» e daí as suas consequências recessivas e depressivas social e economicamente. Como fica patente na crise ucraniana, a União Europeia não tem sido uma entidade política capaz de defender os interesses e a segurança de todos os Estados e cidadãos europeus. E não se continue à procura de bodes expiatórios, uma vez que as responsabilidades são obviamente divididas. Eis por que razão a crise financeira se arrasta, uma vez que as suas raízes políticas profundas não são entendidas. Se pensarmos nas origens da construção americana e no decisivo contributo de Alexander Hamilton, compreendemos que se exige o respeito da velha e autêntica «regra de ouro» da Finanças Públicas, que limita o recurso ao crédito público apenas à realização das despesas reprodutivas de que beneficiem as gerações futuras, o que permitirá «a união de transferência que garante uma solidariedade regular entre as regiões mais pobres e mais ricas». O colete de forças das regras formais e o esquecimento da convergência social tem um efeito de «agonia lenta». Daí a necessidade de jogos de soma positiva, que, no entanto, obrigam à recusa da demagogia e do eleitoralismo, que conduziram a seu modo igualmente à crise das dívidas soberanas. 

LIÇÕES PARA O FUTURO
A ciência económica tem de ouvir mais a filosofia e o pensamento para perceber a importância da incerteza na definição das políticas públicas. Temos de aprender mais com Montesquieu, Leibniz, Kant, Tocqueville ou Husserl, mas também com o tão pouco lido Lord Keynes – não o da vulgata, mas o crítico severo de «As Consequências Económicas da Paz». Devemos lembrar como o Presidente W. Wilson perdeu o seu prestígio pela sua estranha cegueira relativamente à flexibilidade e adequação à realidade na aplicação de princípios com que todos estavam de acordo. V.S.M. tem especialmente razão quando afirma que «Portugal precisa de coragem e lucidez para lutar por uma União Europeia com futuro». Todos devemos fazer o máximo possível para evitar que a União caia num abismo de autodestruição, para onde parece caminhar. Quando se diz que a Europa que queremos deverá ser a dos cidadãos, da liberdade de circulação e de pensamento, sem hierarquia de países, sem orientação hegemónica e com regresso a uma balança equilibrada de poderes, como nos ensinou Kant – urge que sejamos capazes «de nos colocarmos no lugar do outro». Há, pois, que responder aos desafios vitais de manutenção da paz e da segurança ambiental, de consideração das alterações climáticas, de controlo político do poder económico, de inovação tecnológica, de criação de emprego e da coesão num continente esmagado por dívidas e ressentimentos. Para tanto, há que sabermos criar condições para que o diálogo não seja vão, sendo a liberdade, a história e a ciência fatores de eficiência e humanidade.

Guilherme d’Oliveira Martins

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