A Vida dos Livros

De 8 a 14 de fevereiro de 2016

Nuno Teotónio Pereira mostrou-se muito interessado pela saída do livro «Liberdade da Cultura – Preparar o 25 de abril – Uma história pouco conhecida com o Centro Nacional de Cultura» (Gradiva, 2015). Infelizmente já não pôde enviar o depoimento que planeava para a sessão de lançamento com Roselyne Chenu.

TEMPO DE SEMENTEIRA
Trata-se de recordar com intensidade um tempo em que Nuno lançou à terra sementes do direito à diferença. Nesse livro lembra-se como, sob o impulso generoso de António Alçada Baptista, e com o apoio do grande poeta francês Pierre Emmanuel (ao lado de Roselyne Chenu), foi possível a um conjunto de personalidades marcantes na vida cultural portuguesa preparar o terreno no qual viria a florescer a democracia portuguesa. Trata-se da invocação da Comissão Portuguesa para as Relações Culturais Europeias, que representou, a partir de 1965, em Portugal o Congresso para a Liberdade da Cultura, a que estiveram ligadas figuras prestigiadas mundialmente como Karl Jaspers, Jacques Maritain, Bertrand Russell, John Dewey e Benedetto Croce. Além de Nuno, a lista portuguesa integrava João Bénard da Costa, Nuno Bragança, José Cardoso Pires, José-Augusto França, João de Freitas Branco, Luís Filipe Lindley Cintra, Maria de Lourdes Belchior, João Pedro Miller Guerra, Mário Murteira, José Palla e Carmo, José Ribeiro dos Santos, Rui Grácio, João Salgueiro, Adérito Sedas Nunes, Joel Serrão e o Padre Manuel Antunes. A lista fala bem por si, e o testemunho de Teotónio Pereira que está integrado no livro é bem significativo – demonstrando como pessoas tão diferentes, mas unidas por uma atitude comum na defesa da liberdade, puderam pôr em marcha uma iniciativa que ainda hoje constitui um exemplo de coragem, de inteligência e de determinação.

UM RENOVADOR DA SUA ARTE

Quando nos deixou, foram muitas e justas as referências à importância de Nuno Teotónio Pereira na renovação da arquitetura portuguesa. O papel que desempenhou foi fundamental. Como salientou Ana Tostões: «ao longo da sua vasta produção manteve-se fiel a uma criação implicada com o real, com o lugar e as pessoas. Do compromisso social ao político é esse o sentido de uma obra aberta à participação» (DN, 21.1.16). A compreensão do lugar das pessoas e da sua dignidade e o desígnio da justiça e da solidariedade são elementos cruciais na vida do prestigiadíssimo profissional. E todos nos lembramos da saída dos presos políticos de Caxias. O facto de o arquiteto estar entre eles representou que a cidadania e a liberdade, a coerência criadora e a compreensão da relação entre as pessoas e as cidades se ligam indelevelmente. O percurso pessoal é esclarecedor, desde a Escola de Belas-Artes de Lisboa, do I Congresso Nacional de Arquitetura (1948), da militância a favor da Carta de Atenas ou da experiência de Corbusier, do trabalho nas Habitações Económicas, dos quatro prémios Valmor, do Movimento de Renovação da Arte Religiosa (MRAR) simbolizado na igreja do Sagrado Coração de Jesus, mas também do jornal clandestino «Direito à Informação» ou da Comissão de Socorro aos Presos Políticos… – tudo merece atenção como um conjunto significativo. O depoimento no livro «Liberdade da Cultura» fala por si. Eis o que nos diz: «embora contasse, entre os seus membros, amigos já de longa data (como o grupo do “Tempo e o Modo”), muitos deles companheiros nas lutas em que eu e a Natália estávamos envolvidos, tive ali a possibilidade de conviver com personalidades ímpares da intelectualidade portuguesa nos mais diversos domínios, analisando os acontecimentos e trocando opiniões – ora convergentes, ora divergentes. Isto, porque os momentos que o país atravessava eram de clarificação de posições e de separação de águas, no tempo em que o Centro Nacional de Cultura era dirigido por Francisco Sousa Tavares e pela Sophia. Alguns, ainda acreditando na Primavera Marcelista, outros francamente envolvidos na oposição ao regime. A cooperativa Pragma, por exemplo, em que eu estava com o Mário Murteira, o João Gomes e muitos outros, fora já encerrada pela PIDE em 67, mas o apoio financeiro da Associação (para a Liberdade da Cultura) ajudou a que prosseguisse clandestinamente a sua atividade ainda durante algum tempo. (…) Efetivamente a Associação e o CNC eram uma casa só, onde a luta contra a ditadura e a guerra colonial encontravam cada vez mais acolhimento, paredes meias com a sede da Pide…». Alguém me lembrava como na Rua António Maria Cardoso, 68 funcionava um lugar de acolhimento, de reunião e uma pequena escola de cursos livres.

REFERÊNCIA CÍVICA

De facto, (no CNC e não só) Nuno Teotónio Pereira foi uma referência cívica permanente, cuja lição fundamental foi o inconformismo – como ele próprio disse em diversas circunstâncias. A sua presença era uma constante pedagogia e um exemplo – mesmo nos seus gestos mais inesperados. E pode dizer-se que, mais do que por uma qualquer orientação política ou atitude, foi influente pela sua coerência e pela capacidade de ver para além do imediato. O curto prazo político importaria pouco… E nessa capacidade ombreou com personalidades marcantes do Centro, como Almada Negreiros, Fernando Amado, Gonçalo Ribeiro Telles ou Helena Vaz da Silva. Se António Alçada Baptista (homenageado há pouco pelo Município de Lisboa, que atribuiu o seu nome a um dos seus arruamentos) foi o eixo de gravidade na iniciativa recordada, que representou a imagem de vitalidade e força do pluralismo democrático, deveremos sublinhar que Sophia de Mello Breyner e Francisco Sousa Tavares foram elementos chave para a criação de um espaço único de abertura e de respeito pelas diferenças e pelas liberdades. Um dia, aliás, Sousa Tavares conseguiu salvar uns exemplares clandestinos do «Direito à Informação» e do «Boletim Anticolonial», escondendo-os no congelador do velho frigorífico do CNC, o que impediu os agentes da Pide de os apreender, com as consequências previsíveis… Compreende-se, pois, que nas cerimónias de despedida de Nuno Teotónio Pereira tenham estado presentes os poemas de Sophia – como «Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar» e a sentida «Carta aos Amigos Mortos» do «Livro Sexto». Quando o CNC fez 70 anos foi com este poema que Maria Barroso, sem que alguém o pudesse prever, se despediu de nós… «E eu vos peço por este amor cortado / Que vos lembreis de mim lá onde o amor / Já não pode morrer nem ser quebrado / Que o vosso coração já não bate / O tempo denso de sangue e de saudade / Mas vive a perfeição da claridade / Se compadeça de mim e do meu pranto / Se compadeça de mim e do meu canto». Mais do que a cronologia biográfica, fica o sentido humano de quem, até ao fim, acreditou nas pessoas e nas suas diferenças…

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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