A Vida dos Livros

De 6 a 12 de julho de 2015.

«Saudades de Deus» de Joaquim Carreira das Neves (Presença, 2015) interroga a relação com a transcendência, a partir de um diálogo entre a razão e a fé, entre a ciência e a teologia, sem receio de pôr em comum atitudes e reflexões sem preconceitos nem limitações.

UM DEBATE INTENSO
O debate é naturalmente intenso. Há, tantas vezes, posições extremadas, já que nos diferentes campos há tentações de apresentar conclusões definitivas sobre a relação complexa com Deus. O Padre Joaquim Carreira das Neves há muito nos habituou a pôr as questões de um modo aberto e sereno, assumindo o diálogo como uma troca de argumentos, sem a tentação de apresentar conclusões definitivas ou perentórias. Ao interrogarmos os limites, do conhecimento e da compreensão, não estamos no campo das considerações do positivismo científico, que há muito foi posto em causa. Estamos no ponto em que temos de considerar o espírito científico e o sentido crítico. O domínio da fé está para além da importância dessa atitude. Não é com argumentos de fé que cultivamos a ciência, nem é com demonstrações científicas que progredimos na fé. «Nem a religião tem direito de invadir e dar lições à ciência, nem a ciência à religião». Daí que, nesta obra, encontremos, ao longo de quinze capítulos, com base na leitura de textos referenciais do Antigo e do Novo Testamento, que o autor estudou criticamente, bases de reflexão para um verdadeiro diálogo religioso, centrado numa perspetiva de liberdade. Ao perguntar – Deus, sim ou não?, o autor põe-nos o tema das «saudades». «Ao falar de saudades de Deus, quero exprimir que, longe de Deus, arrastamos connosco uma vida de saudade no Deus em que acreditamos. Parto do princípio de que a criação vem de Deus e vai para Deus, de muitas formas e feitios. E isto acontece com todas as religiões, isto é, com todos os que acreditam em Deus – num Deus pessoal ou impessoal». E assim parte do princípio de que não pode haver uma prova, centrada na tutela das igrejas e da tradição. A religião e a ciência são realidades autónomas – influenciadas pela secularização, pela liberdade democrática, pelos direitos humanos, pelo diálogo intercultural, ecuménico e inter-religioso. A liberdade de consciência e a liberdade religiosa, reconhecidas hoje pela Igreja Católica no Concílio Vaticano II, constituem fatores fundamentais de humanismo e de emancipação, colocando a dignidade humana no centro da vida em sociedade e do bem comum. O exemplo do Padre João Resina (1930-2010), engenheiro químico, membro do Centro de Física da Matéria Condensada, é significativo. Uma vez, António Marujo perguntou-lhe: «Um padre que ensinou física durante trinta anos sabe se, afinal, Deus não joga aos dados?». O sacerdote respondeu: «Sou discípulo de Kant. Ele diz que há três questões fundamentais: o que posso saber, o que devo fazer, o que me é lícito esperar. E acho que a primeira depende da ciência. As más catequeses tiveram sempre a mania de misturar essa questão com a apologética. Kant achava que não, eu também. Uma coisa é tentar compreender o universo. Para isso há a física e a biologia. (…) A segunda questão é o que devo fazer, como se deve viver para se ser Homem. Pergunto à História, às culturas, às religiões. A terceira pergunta é o que me é lícito esperar, qual o sentido de fundo de tudo isto. Aí encontro a questão de Deus». A questão é claríssima, as esferas são distintas e a independência de espírito é nitidamente assumida, com todas as consequências.

O DEUS DOS FÍSICOS
Carreira das Neves, depois de invocar o Padre Resina e Kant, lembra igualmente António Lobo Antunes. E ouvimo-lo: «Sabe como me aproximei de Deus? Foi através dos físicos…». Em lugar de uma imagem material, «que é uma coisa que Deus não é», o escritor respondeu à pergunta sobre «quem é o Deus em que acredita», dizendo: «Deus é aquele que me diz ao ouvido que gosta de mim». Eis o ponto fundamental. Estamos no domínio da relação pessoal e da vida vivida. É a lei do amor (agapé). E é sobre essa realidade que o autor escreve «Saudades de Deus», começando nos Salmos do Antigo Testamento («Junto aos Rios da Babilónia sentámo-nos a chorar» e «Como suspira a corça pelas águas correntes»…), prosseguindo na apresentação antropomórfica de Deus, do Génesis ao Livro dos Reis, que Harold Bloom considera obra-prima da História da Literatura, ao lado de Homero, Dante e Shakespeare («O Senhor apareceu a Abraão junto dos carvalhos de Mambré, quando ele estava sentado à porta da sua tenda, durante as horas quentes do dia…»). O caminho prossegue, com o episódio do «Deus Invisível» de Moisés, com Jesus Cristo perante os discípulos de Emaús e a incredulidade de Tomé, com o Deus do amor na pessoa de Jesus Cristo, com a interrogação sobre a dificuldade de amar os inimigos («O bom pastor dá a sua vida pela ovelhas»), com os Padres da Igreja e o seu ensino – «este o rochedo liso, polido e alcantilado, que não apresenta nenhum suporte ou saliência em que se fixe a nossa inteligência…». O escritor continua a sua ação de muito mérito, no sentido de analisar as tradições católicas, o purgatório nos textos bíblicos, Maria, Mãe de Deus, a capacidade inovadora do Papa Francisco, as Novas Espiritualidades – e uma pergunta final”: Que dizer de tudo isto? «Tenho o máximo respeito por estes espiritualistas ou espirituais que não aceitam as “velhas” “religiões” com dogmas, mandamentos e regras de conduta. São uma religião sem Credo à maneira do Credo que estudámos na patrística. São uma religião intimista, sem liturgia exterior Há quarenta anos era a “meditação transcendental”». Como chegou até nós o monoteísmo cristão? Eis a preocupação fundamental do autor as escrever «Saudades de Deus». De um modo rigoroso, e invocando textos fundamentais, estamos perante um percurso que está ao alcance da inteligência crítica. Galileu Galilei ou Charles Darwin obrigaram-nos a pensar de um modo mais exigente, como hoje Stephen Hawking… Os erros (quando o eram) foram assumidos e aceites. Não se trata, porém, de deitar para trás das costas o que obriga a um sentido crítico atual. Temos de compreender que Deus é «passível de “máscaras”, criadas á “imagem e semelhança” dos homens». «Assim foi e assim será. Por isso mesmo, a figura do Papa Francisco procura redescobrir, nos nossos dias, a face mais fiel da pessoa de Jesus como resposta aos grandes problemas da humanidade». Razão tinha Agostinho de Hipona, ao dizer que o nosso coração é um eterno buscador de Deus, ou seja, só encontra paz no coração de Deus. «É eterna a busca da consciência humana pela sua verdade e identidade, Fonte a jorrar a água viva do Deus vivo»…


Guilherme d’Oliveira Martins

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