A Vida dos Livros

De 6 a 12 de abril de 2015.

«Educação Cívica» de António Sérgio (1915) é o conjunto de artigos publicados na revista «A Águia» no ano de 1914 e reunidos em livro pela «Renascença Portuguesa», há exatamente cem anos, constituindo um marco importante nas história das ideias, que obriga à reflexão.

FORMAR CIDADÃOS
Se relermos a obra nos dias de hoje, facilmente percebemos a sua atualidade, já que se trata de ir ao cerne da questão educativa, sem iludir o tema. Falar de educação é referirmo-nos a pessoas concretas, é considerarmos uma sociedade tal como existe, é dispormo-nos a ligar intimamente o desenvolvimento e a ação pedagógica. É a aprendizagem, o saber de experiências feito, que distingue o progresso e o atraso – e daí a necessidade de haver instrução de qualidade, de existir ligação entre educação, ciência e cultura e de se conseguir contrariar a inércia e a mediocridade. Do que se trata é de compreender que desinserida a educação da compreensão da sociedade e de um diálogo criador e transformador a partir desta não há autêntico desenvolvimento humano. A alfabetização no centro e norte da Europa, para assegurar a leitura da Bíblia em língua vulgar, preconizada pelas igrejas reformadas, permitiu um importante avanço nas sociedades nórdicas, até pela maior relevância da participação das mulheres na vida socioeconómica. E o certo é que António Sérgio lê a mais moderna literatura pedagógica do seu tempo, como as obras de John Dewey, de Georg Kerschensteiner ou de Adolphe Ferrière, até por ter acompanhado sua mulher, Luísa Sérgio, a Genebra, ao Instituto Jean-Jacques Rousseau, onde esta foi estudar a educação de infância e aprofundar o método Montessori. Em «Educação Cívica», a escola não se limita a preparar para a vida, já que é uma comunidade ativa, isto é, vida vivida, onde todos, sem exceção, a começar pelas crianças e jovens, são cidadãos na medida das suas capacidades.
António Sérgio é claro ao salientar «a falta de espírito prático do Português», resultante da educação «que se dá à mocidade». Faltaria o desenvolvimento da iniciativa individual, em lugar de fazer «viveiros de funcionários». «Os remédios são, evidentemente, uma escola do trabalho e da autonomia, do labor profissional e da iniciativa – uma escola útil para a vida: é essa mesma que vos proponho. Dessa escola não vai banida – bem ao contrário! – a educação estética e filosófica: só nela a arte, a ciência e a filosofia tomam vida, deixam de ser um cadáver mumificado numa sebenta». Mais que as mnemónicas, importa o conhecimento das coisas e da vida. O essencial não são os programas, mas os métodos e o ambiente escolar. «Uma carneirada escolar dá uma carneirada administrativa, e um decorador de compêndios, um amanuense; mas se cada escola for uma cidade, um laboratório, uma oficina; se conseguirmos deslocá-la do enciclopedismo para a criação – o aluno ao sair irá marcado, terá amoldado o seu espírito à iniciativa produtora e virá a ser para a sociedade uma fonte de progresso».

APRENDIZAGEM DA LIBERDADE
Ao percorrermos os diversos textos que constituem a obra, percebemos por que razão há um verdadeiro cavalo de batalha no sentido da aprendizagem da liberdade e da entreajuda, da autonomia e da responsabilidade, do autogoverno (self-government) e da República escolar. É, aliás, pelo autogoverno que tudo começa, prosseguindo no objeto e princípios do Município escolar, na organização deste, na justiça, disciplina e resultados, bem como na combinação do autogoverno com um apoio próprio, que permita aproximar todos os cidadãos do serviço público. E sobre o que se deseja verdadeiramente neste esforço de proximidade é o que o Foral do Município Escolar proclama: «O objeto do Município é elevar por meios próprios as virtudes cívicas à sua mais alta expressão; promover a felicidade da vida escolar, concorrer para a eficiência da obra do professor, e pôr em relevo diante dos professores e seus discípulos o grande escopo educativo de encaminhar o indivíduo à formação de hábitos de pensar e agir com os outros generosamente e honestamente, e a sempre se comportar com dignidade e sabedoria». A liberdade e a responsabilidade devem ser despertadas, e o rigor e a disciplina visam assegurar que o conhecimento e a compreensão se façam a partir da ideia de que é pessoa a pessoa e olhos nos olhos que a educação se concretiza, construindo-se laboriosamente. «Quão redondamente se ilude quem considere abstratamente o problema pedagógico, fora das concretas relações com a vida económica e política» – ensinou lucidamente António Sérgio. E Vitorino Magalhães Godinho no prefácio à edição, em boa hora, promovida por José Augusto Seabra em 1984, afirma: «o fundamental na doutrina sergiana, é que na escola os educandos se possam organizar como os adultos num município, e assim vão aprendendo, na prática, a desempenhar os papéis sociais da cidadania, a conhecer pela sua própria experiência como funciona a sociedade, e a assumir cada vez mais a responsabilidade dos seus atos e decisões e a plenitude daquilo porque responde o cidadão…».

REFORMA SOCIAL E PEDAGOGIA
Na entrevista a Igrejas Caeiro (1958), Sérgio diz ser «talvez filósofo, sociólogo e reformador social e pedagogista». Mas o problema educativo «tal como o concebeu transcendia o pedagogismo e ia bem mais ao fundo da diagnose da sorte de paralisia que afetava o país» – no dizer de Joel Serrão. Além de «Educação Cívica», há ainda diversas intervenções sobre educação, de sua autoria, que o próprio Sérgio considerou no essencial concentradas nos anos 1914 e 1919, devido à presença em Genebra (de 1914-1916): a educação de infância em novos métodos («O método Montessori», com Luísa Estefânia Sérgio); a ligação entre a instrução popular e as atividades de produção, em «A função social dos estudantes» (1917) e «Educação Profissional (1916); a nova abordagem do ensino histórico, em «Considerações histórico-pedagógicas» (1915); a necessidade das bolsas de estudo no estrangeiro, tratado em «O problema da cultura e o isolamento dos povos peninsulares» (1914); o combate ao ensino passivo e mnemónico, através de um exercício prático («Noções de Zoologia», 1917); e um plano de reorganização – «O ensino como fator do ressurgimento nacional» (1918), bem como o estudo pedagógico (com sua mulher) sobre «Escalas de pontos dos níveis mentais» (1919). Nas tertúlias de sábado na Travessa do Moinho de Vento, à Lapa, onde acorriam personalidades como Castelo Branco Chaves, Agostinho da Silva e Álvaro Salema, e tantos outros, António Sérgio põe a tónica nas ideias e no seu debate. E o pensador nunca perdeu duas tónicas da sua atitude intelectual: uma corresponde ao gosto da polémica, a que nunca virou as costas; outra é a intuição política que foi revelando desde estes tempos até à decisão da candidatura do General Delgado. À velha maneira grega, o ensaísta usa do sentido crítico e da maiêutica com persistência e regularidade. Quem disse ser dispensável a formação cívica?

Guilherme d’Oliveira Martins

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