A Vida dos Livros

De 4 a 10 de agosto de 2014

«Civilisation – A Personal View» (Harper & Row, 1969) de Kenneth Clark (1903-1983) é um repositório magnífico, apresentado na célebre série da BBC, sobre o caminho seguido pela história das artes e das ideias ao longo dos tempos, a partir da perspetiva de um europeu culto, com grande experiência, consciente de que as civilizações se afirmam pelo entusiasmo da criação e definham pelo cansaço e pela exaustão.

UMA SÉRIE DE CULTO
Quando Sir Kenneth Clark apresentou na televisão britânica no final dos anos sessenta a série de treze programas dedicados à história da arte europeia houve dois tipos de reações: por um lado, todos reconheceram a importância e a qualidade da iniciativa, sobretudo mercê da autoridade científica do seu autor; mas, por outro, houve quem referisse o facto de se tratar sobretudo de uma visão eurocêntrica da criatividade humana. O certo é que o autor nunca pretendeu fazer outra coisa que não fosse aquela que apresentou. Falou do que conhecia muito bem, a arte europeia (ele, reconhecido especialista da Renascença), e teve o cuidado de referir sempre que se tratava de uma visão pessoal. Nesse sentido, a série «Civilização» é hoje um exemplo fundamental na história da divulgação da cultura e na defesa e preservação do património histórico. Pedagogicamente, é irrepreensível e se nos revela uma visão centrada num tempo e numa época, não deixa de tornar evidente que, ao longo da sua vida, Kenneth Clark foi, de facto, no âmbito da moderna museologia, um inovador e um precursor… Tinha uma ideia fundamental, que o orientou em toda a vida: tornar a arte acessível e compreensível para o maior número de pessoas, da melhor maneira possível, com inteligência e capacidade de atrair as atenções. Por isso, transformou a National Gallery numa das instituições que mais contribuiu para a divulgação da história da arte junto do público e da opinião pública em geral. Como disse Jorge Calado, num exemplar retrato, K. Clark, nascido em berço de ouro no seio de uma das mais conhecidas famílias escocesas ligadas à indústria têxtil (Oats & Clark), foi um «homem civilizado, acreditava que a ordem é melhor do que o caos, a criação melhor do que a destruição; preferia a gentileza à violência e o perdão à vingança; achava que o conhecimento é preferível à ignorância e tinha a certeza de que a simpatia e a solidariedade humanas eram mais valiosas que a ideologia» (Expresso, 2.8.14).

MUSEU COMO INSTITUIÇÃO VIVA
A exposição agora realizada na Tate Britain – «Kenneth Clark: Looking for Civilisation» – demonstra claramente o papel fundamental que Clark desempenhou na antecipação do moderno conceito de museu na sociedade contemporânea. Longe de ser uma mostra passiva, um museu é uma instituição viva, motivadora de iniciativas, de criatividade e capaz de atrair públicos diversos, e não apenas suscetível de acolher os normais ou tradicionais visitantes dos museus. Contudo, para trazer novos públicos, haveria que desenvolver uma ação pedagógica, informativa e educativa, de modo a que não se tratasse de trazer ao museu hordas de visitantes indiferenciados e anónimos, incapazes de compreender a importância da Arte e da criação para a vida, para a relação com os outros e para a compreensão do tempo. Uma das experiências mais lembrada de Kenneth Clark ocorreu durante a Blitz londrina, na Segunda Guerra Mundial. O responsável da National Gallery (1933-1946) fez questão de manter aberto o museu nas circunstâncias trágicas do conflito, pondo em recato as peças no fundo de minas desativadas do País de Gales, exibindo todos os meses uma pintura e tornando o Museu um centro da vida cultural possível, com a presença do pianista Myra Hess em concertos gratuitos à hora de almoço. Procurou, assim, apoiar os artistas na guerra, elevar a moral dos londrinos e demonstrar na prática o seu entendimento sobre o papel das artes, nos bons e maus momentos, na vida de uma sociedade culta e amadurecida. O caso do escultor Henry Moore é paradigmático. Realizou uma série de desenhos sobre as pessoas de todas as condições sociais que se refugiavam nas estações e túneis do Metro, escapando assim aos bombardeamentos. No final da Guerra, Kenneth Clark deixou a National Gallery para se dedicar à escrita e ao estudo e divulgação da História da Arte. É desse período «Landscape into Art» (1949), baseado no ensino na Universidade de Oxford. Enquanto Ruskin propusera a obra de M.W. Turner como a grande referência da pintura britânica, Clark propôs o exemplo de John Constable. Passados cinquenta anos sobre o auge da celebridade de Kenneth Clark, fica-nos a sua capacidade excecional de ver e de fazer ver, de interpretar e de ensinar a olhar para além da facilidade e da mera presença. O comunicador excecional é insuperável.

O QUE É A CIVILIZAÇÃO? 
Perguntando-se sobre o tema fundamental da série que o celebrizou, Kenneth Clark responde: «O que é a Civilização? Não sei. Não posso defini-la em termos abstratos – agora. Mas penso que posso reconhecê-la quando a vejo; e estou-me a lembrar do que Ruskin disse: ‘As grandes nações escrevem as suas autobiografias em três manuscritos, o livro dos seus acontecimentos, o livro das suas palavras e o livro da sua arte. Nenhum destes livros pode ser compreendido a não ser que leiamos os outros dois, mas o certo é que dos três o único fidedigno é o último’. No essencial, isto é verdadeiro. Escritores e políticos podem falar-nos de toda a espécie de sentimentos edificantes, mas eles são o que é conhecido através de declarações de intenção. Se eu tenho de dizer o que é a verdade sobre uma sociedade, o discurso de um Ministro da Habitação ou os edifícios atuais postos no seu tempo, eu acreditaria nos edifícios…».
 
RELAÇÃO COM A NATUREZA
Ao ouvirmo-lo num conjunto diversificado de temas, percebemos que tinha a paixão pela cultura como força de mudança e de liberdade.«Todas as coisas vivas são nossos irmãos e irmãs (…). Acredito que, apesar dos recentes triunfos da ciência, a Humanidade não mudou muito nos últimos dois mil anos, e portanto devemos continuar a aprender com a História. (…) Acima de tudo, acredito no género de certos indivíduos e admiro uma sociedade que permite a sua existência». Lembremo-nos dos treze episódios de «Civilização», e veremos que não estamos perante uma teoria da História, mas diante da exigência do gosto, do conhecimento e da compreensão. No início, temos os ecos bizantinos e as expressões célticas, que se singularizam nos seis séculos depois da queda do Império Romano («The Skin of our Teeth»). Segue-se o grande impulso do século XII («The Great Thaw») e o final da Idade Média, em França e Itália («Romance and Reality»). Clark entusiasma-se sobre a sua paixão: o homem medida de todas as coisas, a partir de Florença e a compreensão do Herói como artista – Miguel Ângelo, Rafael e Leonardo… O Protesto e a Comunicação, a Grandeza e a Obediência entrecruzam-se, com a Reforma, Lutero, Dührer, Erasmo e Montaigne, mas também a Roma de Miguel Ângelo (ainda ele) e de Bernini. Com grande rigor e proximidade, Sir Kenneth Clark vai até aos Países Baixos e a Rembrandt interrogar-se sobre a luz da experiência e procura, na interrogação da felicidade, o barroco e o rococó, para culminar no Sorriso da Razão, bem representado por Voltaire e consubstanciado no «Enlightment» e nos palácios de Versalhes e Blenheim. E nos dois últimos séculos: Turner e Constable levam-nos até à interpretação da Natureza; o Romantismo levanta-nos as suas próprias falácias (com  Byron, Delacroix e Rodin) e a industrialização aponta-nos o para um novo humanismo, pleno de contradições, entre o desenvolvimento humano e uma forte presença da modernidade, em múltiplas manifestações, profeticamente anunciadas por W. B. Yeats. Em «Civilização» é a História como catalisador da dignidade humana que se apresenta em toda a sua força…

                                                                                                                                                   Guilherme d’Oliveira Martins

Subscreva a nossa newsletter