A Vida dos Livros

De 4 a 10 de abril de 2016

Diogo Pires Aurélio em «O Mais Natural dos Regimes – Espinosa e a Democracia» (Temas e Debates, 2014) analisa com especial perspicácia o entendimento do filósofo de origem portuguesa, pondo a tónica no conceito substantivo de exercício partilhado do poder político.

UMA REFLEXÃO CONTEMPORÂNEA
A consideração do pensamento de Espinosa revela-se especialmente importante, uma vez que ajuda a uma reflexão contemporânea sobre a democracia. Sem qualquer ilusão anacrónica, do que se trata é de ir ao encontro de uma reflexão antiga e sempre inacabada sobre o exercício das responsabilidades políticas. «Se, de facto, “a natureza não cria nações”, como afirma Espinosa, e a organização de um agregado não tem fundamento senão na totalidade das vontades particulares que nele se confrontam ou associam, então, a verdadeira razão de ser da política é criar as condições para que o poder, que por natureza pertence à totalidade, não se torne exclusivo de nenhum particular e todos os indivíduos gozem de liberdade para participar na definição do que se diz comum». Este debate continua presente, sobretudo quando nas sociedades contemporâneas os cidadãos se perguntam sobre o lugar e a influência que têm e desempenham. A cada passo encontramos a tensão entre representação e participação – e o certo é que a mediação democrática carece de aperfeiçoamentos, de modo que os cidadãos se sintam úteis e influentes na busca das soluções que defendam o bem comum. Não cabe aqui proceder a uma reflexão sobre as preocupações fundamentais de Espinosa, sobretudo em articulação com autores que ainda hoje marcam a democracia, como Hobbes, Montesquieu, Rousseau ou Tocqueville, mas, como diz Diogo Pires Aurélio: «Se a multidão é (…) um conceito da maior importância na sua filosofia (de Espinosa), é porque ela permite pensar o direito como expressão e ordenação da coexistência de uma multiplicidade de indivíduos, cada um deles com o seu direito natural. (…) Da mesma forma que a substância é causa imanente dos modos, a potência da multidão é causa imanente do direito comum». Eis o atualíssimo tema que devemos debater – de modo a reforçar a legitimidade cívica em termos tais que se considere que as vontades particulares que se confrontam ou associam conduzem à verdadeira razão de ser, insista-se, da política: «criar as condições para que o poder, que por natureza pertence à totalidade, não se torne exclusivo de nenhum particular».

NOVAS CIRCUNSTÂNCIAS

A crise financeira de 2008, a mais difícil de superar desde a segunda Guerra Mundial, pôs a tónica da dificuldade que as democracias têm sentido para responder às condições novas da globalização e do «sistema de polaridades difusas», que caracterizam a sociedade internacional, depois de 1989. Acresce que as desigualdades se agravaram e a participação democrática conhece condições muito heterogéneas de concretização. Os números da globalização preocupam-nos: 1% dos mais ricos tem 50,1% da riqueza mundial; mais de mil milhões de pessoas têm de viver com menos de 1,14 euros por dia; 35 mil pessoas, das quais 16 mil crianças, morrem de fome em cada dia que passa… Se os números absolutos da pobreza sofreram melhorias, o certo é que a equidade e a eficiência obrigam a respostas centradas na coesão, na confiança, na partilha de responsabilidades, na convergência social e no desenvolvimento humano. A paz, o desenvolvimento sustentável, o equilíbrio ambiental e a diversidade cultural têm de ser colocadas na ordem do dia. A qualidade da democracia torna-se um tema prioritário – uma vez que as resistências à criatividade e à inovação se devem fundamentalmente a um problema de legitimidade. O Estado de direito baseia-se no primado da lei, na legitimidade da origem, no pluralismo e na separação de poderes, mas cada vez mais na legitimidade do exercício. Há medidas estruturais com repercussões no longo prazo que não podem depender dos ciclos eleitorais. Knut Wicksell já falava há um século de compromissos políticos amplos, que permitissem a estabilidade das medidas ligadas ao desenvolvimento das sociedades. Os temas da melhoria do emprego qualificado, da educação permanente, do reconhecimento de competências adquiridas, do ensino profissional, da dimensão cultural e artística da educação, da avaliação consistente da educação e da formação (envolvendo os aspetos institucional e do desempenho de professores e alunos), do reconhecimento do mérito, da articulação entre educação, formação, ciência e cultura têm de ser assumidos pela sociedade toda. A aprendizagem, a experiência e a cooperação são, de facto, elementos decisivos do desenvolvimento humano. As políticas sociais têm de se centrar na lógica da diferenciação positiva, já que é insuficiente a igualdade de oportunidades, impondo-se completá-la com correção das desigualdades. Urge, pois, concretizar um autêntico sistema de inovação. Deve transformar-se a informação em conhecimento e o conhecimento em capacidade criadora – partindo da diversidade e do saber de experiências feito.

LEGITIMIDADE DE EXERCÍCIO

Se falamos da legitimidade do exercício e da sua importância cada vez maior, estamos a referir a prestação de contas permanente e a ligação entre a riqueza criada e as necessidades a satisfazer. O contribuinte que paga os seus impostos tem direito a auferir serviços públicos de qualidade – que permitam manter e consolidar os progressos na saúde (por exemplo, mortalidade infantil e eficiência na cobertura da população pelo SNS) ou na educação e formação (níveis de escolaridade, redução do abandono e da exclusão, promoção do sucesso). O peso da despesa pública na produção de cada economia não se afere em abstrato. A sustentabilidade das finanças públicas e a eficiência dos programas de ajustamento, os compromissos de redução da dívida pública e do défice orçamental estrutural dependem do equilíbrio entre a criatividade e a partilha de recursos. Exige-se ainda simplificação, clareza e estabilidade das leis, em especial do sistema fiscal, em nome da confiança, bem como prevenção da corrupção, pela articulação entre investigação criminal e existência de mecanismos que antecipem os riscos e garantam uma estrita salvaguarda do interesse geral. A democracia moderna só mobilizará os cidadãos se se tornar uma democracia de resultados. Impõe-se, pois, a responsabilidade de ligar rigor e audácia. Rigor nos métodos, nos procedimentos e na clareza, sobriedade e simplicidade. Audácia na capacidade de ir ao encontro dos legítimos anseios de todos os cidadãos. E a subsidiariedade permitirá ligar os níveis local, nacional e supranacional da democracia… Espinosa definiu democracia como «a união de um conjunto de homens que detêm colegialmente o supremo direito a tudo o que estiver em seu poder»… Disso se trata!

Guilherme d’Oliveira Martins 
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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