A Vida dos Livros

de 3 a 9 de março 2014

«Condicionantes Culturais da Literatura de Viagens», coordenado porFernando Cristóvão (Cosmos, 1999) é uma obra na qual se insere um tema que suscita o maior interesse, especialmente no nosso caso, integrando-se numa evolução global, que permite compreender a importância dos relatos da descoberta e do conhecimento de outras terras e novos mundos, o que, ao longo do tempo, foi ganhando um significado multifacetado e fundamental.

QUE LITERATURA?
Se Audrey Bell falava de «livros de viagens», Fidelino de Figueiredo distinguia os «géneros menores», como roteiros de viagens, relações de naufrágios e cartas, da autêntica literatura, que envolvia procura de «emoção estética», enquanto Jacinto do Prado Coelho entendia por «literatura de expansão todo o conjunto de obras literárias suscitadas pela atividade descobridora, conquistadora e missionária». Já António José Saraiva e Óscar Lopes consideravam que em quinhentos e seiscentos «a literatura de viagens portuguesa» não passou do nível de reportagem. Em suma, há uma acentuada diversidade de critérios, que não é exclusivo português, uma vez que a mesma dificuldade é encontrada nos estudos comparados, tendo havido, com o decorrer do tempo, uma progressiva distinção entre literaturas de viagem e de descoberta. E a verdade é que, depois de 1700, encontramos sobretudo o desenvolvimento da literatura de viagem. E não podemos esquecer que os primeiros textos sobre o descobrimento de novas terras, não tendo sido publicados diretamente, serviram de base a outros relatos de terceiros ou foram alvo de modificações pelos editores. Como lembra Fernando Cristóvão na introdução geral à obra, passaram a ser inseridas neste género literário, dito de viagens, desde o século XIII, os livros de peregrinações religiosas ou sobre as rotas comerciais, avultando os relatos de Marco Polo (saído em tradução nos prelos portugueses, graças a Valentim Fernandes, em 1502, mas já existente na livraria de D. Duarte), de Piano Carpino, de Ruybroek, de Odorico de Pordenone, seguindo-se-lhes as obras de John de Mandeville, o «Libro del Conoscimiento de todos los Reinos» e o «Libro del Infante D. Pedro de Portugal». Sem ser exaustivos, importa lembrar, já no século XVI, as obras de Montalboddo, d’Anchiera, Eden, António Galvão, Ortelius e, natualmente, a «História Trágico-Marítima», de Gomes de Brito. O interesse pelas viagens, pelas peripécias acontecidas, pelas dificuldades encontradas, pelo encontro de tempestades e de corsários, pelas paisagens exóticas e pelos povos desconhecidos, tudo isso veio a suscitar o maior interesse dos leitores cultivados, o que levou os editores a interessarem-se por produzir obras atraentes, profusamente ilustradas. Giovanni Battista Ramusio fez publicar «Delle Navigationi et Viaggi» (1550-59) e em Inglaterra Richard Hakluyt, depois de 1589, editou «Principal Navigations, Voyages and Discoveries of the English Nation», obra, cuidadosamente seguida por Samuel Purchas, com influência decisiva para o desenvolvimento do espírito colonizador da Albion. E assim os britânicos tornaram-se, ao longo do século XVIII, os melhores especialistas na edição de literatura de viagens, sempre profusamente acompanhada de requintadas gravuras. Não esqueçamos, no final do século XVI (1595), o célebre «Itinerarium» do holandês J. Linschoten, revelador das novas oportunidades do «mare liberum». Os franceses só tardiamente entraram neste comércio: o Abbé Prévost traduziu  coleções inglesas e De Laporte publicou «Le Voyageur Français», com tradução portuguesa apenas em 1799. Até ao século XIX encontramos essa tendência, animada pela exploração dos continentes desconhecidos, designadamente África. E, a partir de 1840, nasce o interesse pelo «tourism», com um papel importante desempenhado por Thomas Cook. No entanto, a literatura da viagem turística foi-se empobrecendo, pela difusão de guias turísticos e pela redução drástica dos riscos das deambulações pelo mundo, contando com transportes cada vez mais rápidos e seguros, da navegação a vapor ao caminho de ferro, e depois ao automóvel e ao avião. Foi desaparecendo, por isso, a componente de aventura, o que permitiu, em contrapartida, o surgimento da literatura de viagens fantásticas e imaginárias.

UMA NOVA FASE
Passámos a ficar longe dos textos de Marco Polo, de Pigafetta ou de João de Barros, descritos como exemplos de narrações prodigiosas, de coisas maravilhosas e de descrições espantosas e inauditas. Os títulos são encomiásticos, como o de Guido Gualteri sobre a embaixada japonesa a Roma e a Lisboa (com um longo título condizente), mas não resistimos à tentação de lembrar parte da designação do «Itinerarium» já citado de Linschoten: «Histoire de la navigation de Ian Hugues de Liscot Hollandois et de son voyage es Indes Orientales: contenante diverses descriptions des Pays, Costes, Havres, Rivieres, Caps & autres lieux iusques à presente descouverts para les Portugais…» etc.. As obras pretendem, deste modo, revelar os caminhos, as terras, as riquezas, as gentes, a história, a geografia, a fauna e a flora, as curiosidades – conseguindo, a um tempo, a deleitação dos leitores e a sua mobilização para os desafios da colonização e da expansão. As viagens deixam de considerar realidades estáticas. Pretende-se atrair os viajantes pela beleza e pelo requinte: Mendes de Vasconcelos nos «Diálogos do Sítio de Lisboa» defende que Lisboa deve ser escolhida para cabeça de um Império (1608); Frei Nicolau de Oliveira no «Livro das Grandezas de Lisboa» (1620) afirma que a cidade vale três Sevilhas; D. Manuel Caetano de Sousa fala do «Peregrino Instruído» que deve educar-se e cultivar-se sobre o que visita e observa (1721). A «Odisseia» de Homero e a «Eneida» de Virgílio tornam-se o paradigma da verdadeira literatura de viagens, em busca do sentido da existência e dos diversos símbolos dos novos mundos. A própria viagem de Dante na «Divina Comédia» é uma ilustração da noção mais fecunda de peregrinação. A literatura de viagens reparte-se, assim, em cinco capítulos diferenciados: peregrinação, comércio, expansão, erudição e formação e imaginárias. No tocante à peregrinação (per-agros), temos os lugares religiosos, a começar por Jerusalém e Roma e a continuar em Chipre de Santo Epifânio, na Gália de S. Martinho de Tours e de S. Denis, nas Espanhas de Santigo de Compostela (campus-stellae) ou nas Áfricas de S. Cipriano – lembrando-nos, naturalmente de Frei Pantaleão de Aveiro e do «Itinerário da Terra Santa» (1593). No comércio, há a grande transição das rotas terrestres para o caminho marítimo para a Índia de Gama, até à experiência holandesa da Companhia das Índias Ocidentais, sobre que se disse, a propósito de Nassau: «nossos mercadores se fizeram guerreiros e nossos guerreiros se fizeram mercadores…». Na expansão, coexistiram, porém, a política, a fé e a ciência – e as dificuldades políticas justificativas encontramo-las logo com Zurara a propósito de D. Henrique, as influências transformam-se, sobe a febre da cobiça e das riquezas, os ideais são relegados para segundo plano, Las Casas e Vieira levantam vozes contra a desumanidade; os Padres Luís Fróis e João Rodrigues (Tçuzzu) falam-nos de evangelizar o misterioso Japão, os Padres Baltazar Teles e Frei João dos Santos falam da terra de Preste João, da Etiópia e dos catecismos em línguas indígenas, Lope de Vega invoca o «Brasil Restituído»; na ciência, de Garcia de Orta a Charles Darwin, prosseguimos nas explorações africanas de Livingstone, Stanley, Serpa Pinto, Capelo e Ivens (da Conferência de Berlim ao dramático Mapa Cor-de-Rosa…); já nas viagens eruditas, de formação e de serviço verifica-se que o movimento se tornou a regra – o estudo pressupõe ir ao terreno e aos lugares, sem o que nada se pode compreender; e chegamos às viagens imaginárias, desde a «Navigatio Brandonis» (1130) à «Utopia» de Thomas Morus (1516), à «Cidade do Sol de Capanella (1613?), chegando a Jonathan Swift, a Júlio Verne e a H.G. Wells… Viajar continua a ser uma maravilhosa tentação para reencontrar Ítaca.

Guilherme d’Oliveira Martins

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