A Vida dos Livros

De 29 de junho a 5 de julho de 2015.

«Cultural Heritage counts for Europe» (2015) é um documento que merece uma atenção especial. Foi elaborado sob a égide da «Europa Nostra» e constitui um guião que deverá ser seguido para que a política cultural e a proteção do património, da herança e da memória sejam adequadamente salvaguardados em nome da capacidade criadora de valor.

O CONGRESSO DA EUROPA NOSTRA

O Norske Selskab é uma referência na história norueguesa. É um antigo clube literário e cívico, fundado por estudantes noruegueses na Dinamarca em 1772, cujos membros participaram ativamente na redação da Constituição da Noruega, assinada em 17 de maio de 1814 em Eidsvoll, pequena cidade histórica ao norte da antiga Christiania, hoje a capital Oslo. A lei fundamental foi inspirada, como se sabe, na Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776) e nos ideais da Revolução Francesa, iniciando a sua vigência no começo da união pessoal com a Suécia, depois de uma ligação ancestral à Dinamarca, desde 1381. Só em 1905 a Noruega alcançaria a independência total, sempre sob a inspiração da Constituição de 1814. E foi impressionante ver a melhor coleção de pintura norueguesa detida por uma instituição particular, entre livros antigos e um ambiente de circunspeção e sabedoria. O Conselho da Europa Nostra reuniu-se este ano no «santo dos santos» desse clube de antigas tradições, na sala de jantar dominada pelo imponente quadro a óleo de Eilif Peterssen, de 1892, alusivo às origens da agremiação, em que os pais fundadores se apresentam com impecáveis indumentárias do século XVIII. Sendo certo que neste ano celebramos os oito séculos da «Magna Carta Libertatum», foi muito significativo que nos tenhamos encontrado nesse lugar histórico do constitucionalismo norueguês, no Congresso Europeu do Património Cultural, que se desenrolou em sítios tão emblemáticos como o Palácio da Cidade, onde todos os anos é entregue o Prémio Nobel da Paz, na Domus Academica e na Aula da Domus Media da Universidade de Oslo, entre as obras-primas de Edvard Munch «História» e «Alma Mater», bem como no Teatro Nacional (sob a inspiração de Ibsen e de Bjoernson) ou na Sociedade Militar… Entre as referências históricas do Norske Selskab e os alertas contra a destruição do património histórico do Médio Oriente, lembrámos a lição de T. S. Eliot e da misteriosa Elena Ferrante: «não há obra literária ou cultural que não seja fruto de uma tradição, de muitos talentos, de uma espécie de inteligência coletiva».

PATRIMÓNIO CULTURAL COMO PRIORIDADE

O tema do património cultural entra na ordem do dia no momento em que a crise financeira e as suas consequências revelam uma exigente necessidade de associar a inovação à criação de valor, em lugar da ilusão em torno da mera aparência de riqueza, apenas pelo crédito e pela circulação monetária, marca do risco da mediocridade contemporânea. Ora, em Oslo, no Congresso Europeu, foi apresentado, sobre este tema, um documento de grande relevância: o relatório intitulado «O Património Cultural conta para a Europa» (www.encatc.org/culturalheritagecountsforeurope), elaborado graças ao impulso da «Europa Nostra» (representada em Portugal pelo Centro Nacional de Cultura), com a participação da Rede Europeia da Gestão Cultural e da Política Cultural da Educação (ENCATC), da Associação de Cidades e Regiões Históricas (Heritage Europe), da «Heritage Alliance» do Reino Unido, do Centro Cultural Internacional de Cracóvia e do Centro Internacional Raymond Lemaire para a Conservação de Louvaina. Estamos perante uma reflexão muito séria, que se afasta claramente do entendimento que tem subalternizado o tema do Património Cultural, como pedra angular das políticas públicas de cultura. Em lugar de se entender o património de forma estática e retrospetiva, há um novo pensamento dinâmico sobre a herança recebida das gerações que nos antecederam, que devemos desenvolver, protegendo e salvaguardando o legado histórico e sabendo articulá-lo com a sociedade e a criação contemporâneas. A Convenção-Quadro do Conselho da Europa sobre o valor do Património Cultural, assinada em Faro em 27 de outubro de 2005 e entrada em vigor em 1 de junho de 2011, demonstra, com meridiana clareza, que não pode haver uma política pública de cultura digna desse nome sem a defesa coerente e sistemática do património, da herança e da memória. Plácido Domingo, presidente da «Europa Nostra», lembra o que Albert Einstein teria dito: «nem tudo o que conta pode ser contado, e nem tudo o que pode ser contado conta». Neste sentido, urge uma ponderação muito séria sobre o que verdadeiramente conta. Longe da ideia de que a cultura é um adorno ou um luxo, do que se trata é de dar uma importância transversal à criação e à inovação, ligando-as à paz, ao desenvolvimento humano, à coesão social, à inclusão, à diferenciação, à educação e à ciência.

PRESERVAR A MEMÓRIA

Os monumentos, a paisagem, os arquivos, as bibliotecas, as cidades, as tradições imateriais constituem a matéria-prima por excelência da preservação séria da memória – de que nos fala Elena Ferrante. Lembramo-nos das campanhas de Garrett e Herculano. Não podemos deixar estragar ou destruir o que existe, devemos restaurar e valorizar o que recebemos, tornando-o acessível, divulgando-o, estudando-o e conservando-o. E devemos autonomizar as atividades criativas, constituindo um Conselho das Artes, estável, respeitado e não dependente dos ciclos eleitorais. O relatório fala-nos de dez pontos, que devemos ter bem presentes: o património cultural é uma componente-chave para o desenvolvimento, criação e competitividade de regiões, cidades, povoações e meios rurais; os países e as regiões europeus só poderão ganhar valor e atratividade (desde o turismo ao investimento económico) pelo património cultural; a criação de emprego, em especial nas pequenas e médias empresas e em áreas de grande potencial inovador, precisa da valorização do património cultural; estamos, pois, diante de uma importante fonte de criatividade e inovação, em especial pela necessidade de atrair novos públicos e de fazer participar os cidadãos; o património cultural gera riqueza, de que beneficiam todos os agentes económicos e, por via dos deveres fiscais, os próprios Estados; o património cultural ajuda à regeneração e ao ordenamento dos territórios; contribui em parte para a resposta aos desafios das mudanças climáticas pela lógica integrada em que intervém no urbanismo e nas construções; permite ainda garantir uma melhor qualidade de vida, tornando lugares de referência aprazíveis, enquanto fatores de uma melhor existência pessoal; o património cultural favorece a educação permanente, o melhor conhecimento e compreensão da história, do espaço e do tempo; e combina e articula diferentes fatores que melhoram o capital social, a coesão económica, social e territorial, favorecendo a confiança, a participação e o compromisso dos cidadãos. Deste modo, o «desenvolvimento sustentável» terá de envolver os domínios cultural, social, ambiental e económico. Daí cinco recomendações estratégicas, que passam pela transversalidade da cultura, pela avaliação do respetivo impacto, pela consideração de prazos alargados na ação, pela partilha e disseminação de informações e dados e pelo impacto e visibilidade desses procedimentos. Eis que o património cultural deve ter voz, significado e importância.

Guilherme d’Oliveira Martins

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