A Vida dos Livros

De 26 de outubro a 1 de novembro de 2015

Pierre Emmanuel (1916-1984) foi um poeta francês que apoiou generosamente a causa democrática portuguesa, através dos seus amigos António Alçada Baptista e João Bénard da Costa. No próximo ano celebraremos, por isso, em Portugal o seu centenário com a presença de Roselyne Chénu. Recordamos o autor de «Le Monde est Intérieur» (1967).

PORTUGAL NA ENCRUZILHADA
Portugal viveu, a seu modo, a influência da Segunda Grande Guerra. Foi lugar de passagem de muitos fugitivos para os Estados Unidos da América. Foi ponto de encontro e de contacto de agentes secretos aliados e do «eixo». Dir-se-ia que a simbólica partida do voo para Lisboa, no filme «Casablanca», em que Humphrey Bogart e Ingrid Bergman protagonizam o drama do conflito, constitui a demonstração de como Portugal foi uma placa giratória decisiva nesse tempo. Em 1945, com o fim da guerra, houve quem pensasse que os aliados iriam pressionar os Estados ibéricos no sentido da democracia e do pluralismo. No entanto, as feridas abertas pela guerra civil espanhola e o desenvolvimento da guerra fria suscitaram entre os membros da Aliança Atlântica receios e cuidados especiais, que se traduziram na manutenção dos regimes peninsulares. A neutralidade colaborante portuguesa do final do conflito, apesar de todas as ambiguidades, serviu para legitimar «de facto» a continuidade de Salazar, sob a fórmula eufemística de «democracia orgânica». As esperanças alimentadas em 1945 foram, deste modo, diversificadas e imediatamente vãs – desde os republicanos da oposição clássica moderada aos comunistas, passando pelos católicos e pelos monárquicos – tendo estes julgado ver então uma possibilidade de mudança de sistema, contando com a antiga e suposta ambiguidade do Presidente do Conselho. Depressa se percebeu, no entanto, que tudo ficaria na mesma, apesar dos equívocos terminológicos e da fórmula enganadora das «eleições livres com na livre Inglaterra». As oposições alimentaram no seu seio grandes contradições, em especial quanto à política ultramarina. Afinal, a República de 1910 fora criada na sequência da humilhação do Ultimatum inglês e a memória colonial desse episódio estava bem presente nos espíritos. Mas os tempos eram outros, agora. O Partido Comunista beneficiava de um clima internacional de guerra-fria, o que levava a «situação» a elegê-lo como inimigo principal. Já a posição da Igreja Católica e dos seus elementos mais avançados, antecipando o clima do Concílio começava a ir ao encontro do reconhecimento da autodeterminação das Novas Nações, demarcando-se do eurocentrismo imperial. António Alçada Baptista disse sobre esse tempo, ser preciso ter presente que «a Igreja, o Exército, o funcionalismo público e a burguesia de província (estruturalmente ligada à Igreja) constituíam as forças sociais de apoio da situação saída da Revolução do 28 de maio de 1926. Era a poderosa força da inércia perante a frágil força da mudança, ademais perturbada pela simbiose dificilmente separável da agitação e da demagogia que caracterizou uma boa parte da expressão política da Primeira República». Neste contexto, o Congresso para a Liberdade da Cultura teve um papel de assinalável importância em Portugal, graças à articulação das intervenções de Pierre Emmanuel (coordenador do Congresso) e de António Alçada Baptista (representante em Portugal). Tratava-se de mobilizar um conjunto notável de personalidades marcantes na sociedade portuguesa a fim de coordenarem ações relevantes no domínio do intercâmbio cultural e do incentivo à cooperação e mobilidade internacionais.
 
UM PRECIOSO APOIO À LIBERDADE
«Um dia veio a Lisboa, diz Alçada, numa visita de trabalho, o sociólogo francês Cuisinier que me entregou uma carta de Pierre Emmanuel, Presidente da Association (pour la Liberté de la Culture), que me pedia para o contactar numa próxima visita a Paris. Daí criámos uma grande amizade que hoje posso recordar como um grande privilégio que tive» («Pesca à Linha», p. 73). Como veremos, ao lado de Alçada Baptista viriam a estar, mercê de uma criteriosa escolha, Adérito Sedas Nunes, Joel Serrão, José-Augusto França, José Cardoso Pires, José Ribeiro dos Santos, Luís Filipe Lindley Cintra, Mário Murteira, João Pedro Miller Guerra, João Salgueiro, João Bénard da Costa, Nuno de Bragança, Maria de Lourdes Belchior, Nuno Teotónio Pereira, Rui Grácio, João de Freitas Branco, José Palla e Carmo e o Padre Manuel Antunes. Na passagem dos anos sessenta para setenta, João Bénard da Costa, primeiro na redação de «O Tempo e o Modo» e depois no Centro Nacional de Cultura secretariou a Comissão Portuguesa para as Relações Culturais Europeias (assim se designava a instituição) – o que permitiu um apoio organizado de bolsas de estudo, de viagens, de participações em seminários estrangeiros, de intercâmbio de informações e apoio à publicação de obras relevantes.
 
ABRIR HORIZONTES NOVOS
Como reconheceu António Alçada, primeiro animador da iniciativa: «Além da ajuda material, esta ação permitiu a muitos intelectuais portugueses formas de intercâmbio com os centros culturais europeus que os fizeram sair do gueto em que estávamos metidos e lhes deu ocasião para participar em núcleos de diálogo com a cultura europeia, nomeadamente com intelectuais de países sem liberdades do Leste, de Espanha e da América Latina. Esta Comissão, além do apoio que pôde dar a iniciativas que não teriam outras fontes de financiamento, foi também um lugar de encontro entre pessoas de várias ideologias e mais uma presença dos católicos na ação de oposição ao antigo regime». É certo que esta colaboração não foi destituída de dificuldades e problemas, como a do forte abalo sofrido por Pierre Emmanuel quando se soube que havia uma organização fantasma, através da qual eram atribuídos dinheiros da CIA. Então veio a Portugal apresentar o caso, mas foi-lhe transmitido nunca ter sido posta em dúvida a sua boa fé e a importância fundamental do seu apoio. A Associação passou a ter apoios da Fundação Ford com inteira transparência… Foi ao longo deste processo (desde as origens da colaboração) que se demonstrou a nobreza de carácter de Pierre Emmanuel – «daqueles raros portadores de uma profunda e aristocrática relação com a liberdade dos homens, que o fazia estar atento à situação dos intelectuais e dos escritores, daqueles que na sua expressão «havia sido confiado o depósito da palavra humana». E, talvez melhor que alguém, António Ramos Rosa definiu assim Pierre Emmanuel, numa linha de culto essencial do espírito: «A sua vocação é essa: a de um grande espírito para quem o cristianismo é a grande “chance” de nascer a cada momento no espírito e na realidade mais humilde da existência». Foi essa oportunidade que o poeta quis demonstrar na amizade sincera à liberdade portuguesa, através de um amigo generoso e empenhado, com o António. E Sophia, traduziu assim o sublime Canto LXVI: «O silêncio está em flor / Como uma macieira branca sob a lua / Oh lua / quando entre as árvores sobes / tão puro se desenha este ramo / a eternidade é de repente tão aguda / que choramos de abandono gritamos / de alegria / enquanto a alma evaporada morre / no perfume lunar da noite branca»… Afinal, a construção gradual da democracia faz-se muito de compromissos com a dignidade humana, em que Emmanuel e Alçada acreditavam.


Guilherme d’Oliveira Martins

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