A Vida dos Livros

de 26 de maio a 1 de junho de 2014

Almeida Garrett faz uma viagem sentimental em «Viagens na Minha Terra». Aí está a originalidade da obra, bem evidente no tema, na estrutura, na linguagem. Se há uma viagem em sentido literal, há sobretudo uma deambulação, na qual a reflexão individual, a descoberta do caminho seguido e a invocação da humanidade e da natureza se juntam a um enredo romanesco de encontros, mas sobretudo de grandes desencontros… 

O INÍCIO DA VIAGEM…
Xavier de Maistre (1763-1852) é invocado no início da viagem. «Que viaje à roda do seu quarto quem está à beira dos Alpes, de Inverno, em Turim, que é quase tão frio como S. Petersburgo – entende-se. Mas com este clima, com esse ar que Deus nos deu, onde a laranjeira cresce na horta, e o mato é de murta, o próprio de Maistre, que aqui escrevesse, ao menos ia até ao quintal». É lembrado o livro «Voyage autour de ma chambre» (1795), mas o método seguido por Garrett é outro, porque beneficia do tempo ameno português para ir até Santarém, ao encontro do seu amigo Passos Manuel, rememorando não apenas a história da implantação do liberalismo, e da guerra civil, mas valorizando o próprio ato de viajar, ao encontro da natureza e do que hoje designaríamos como património cultural. Não por acaso, há um momento fundamental nestas «Viagens» que é a paz de Évora-Monte, pela qual o país teoricamente se pacificou, e a verdade é que Carlos simboliza o muito que ficou por fazer para que a paz significasse emancipação nacional. Enquanto Alexandre Herculano mantinha «O Panorama», jornal literário e instrutivo da Sociedade Propagadora de Conhecimentos Úteis, Almeida Garrett faz das suas «Viagens» uma oportunidade para demonstrar que as raízes históricas eram muito mais exigentes do que a resposta dos seus contemporâneos à nova circunstância, aos novos princípios, pelos quais o poeta e dramaturgo tanto se bateu. Herculano assegurou a direção de «O Panorama» até 1839, seguindo-se-lhe António Feliciano de Castilho e António de Oliveira Marreca. Há um sentido pedagógico, de preparar a «Regeneração» da pátria, através da tomada de consciência da necessidade do conhecimento, do uso adequado das liberdades. Como afirma «O Panorama» em 1839: «O homem sincero, alumiado, e bom; o verdadeiro filósofo, isto é, o amigo da sabedoria útil, regerá os passos do seu pensamento, e, se o pudesse, os de todos os seus semelhantes, pelo caminho médio; pedirá e tomará dos arrazoados todas as verdades; porque todas elas são prestadias; pedirá e tomará dos crentes tudo quanto, não contrastando a razão, concorrer de perto ou de longe para amansar os ciúmes feros da nossa natureza: dirá aos primeiros: dai-me, de hora para hora, subidas e melhoradas todas as ciências benfeitoras da terra e aos segundos alegrai-me, no meu caminho, de perigos e tribulações, com os vossos cânticos de esperança e valor». Em 1843, a «Revista Universal Lisbonense», dirigida por Feliciano de Castilho, começa a dar à estampa os primeiros seis capítulos das «Viagens na Minha Terra». Garrett vai ao encontro de seu amigo Passos em Santarém, exilado na pátria, depois do golpe de Estado de Costa Cabral (1842), mas recusa que haja mexeriquice a dominar o desígnio político da visita. A 17 de julho de 1843, uma segunda-feira, o escritor parte, e ouve o bater das seis horas em S. Paulo. Embarca no Terreiro do Paço no vapor para Vila Nova da Rainha, «a um lado, a imensa majestade do Tejo em sua maior extensão e poder, que ali mais parece um pequeno mar mediterrâneo; do outro, a frescura das hortas e a sombra das árvores, palácios, mosteiros, sítios consagrados todos a recordações grandes ou queridas». Depois, sucedem-se os lugares ribatejanos: Alhandra, Vila Franca. Durante a viagem, o autor partilha o prazer do fumo do charuto e assiste ao travar ameno de razões entre dois grupos, os ílhavos e os bordas-d’água, aqueles, varinos, vestidos de saiotes gregos, estes, campinos, de calção amarelo e jaqueta de ramagem. Que se discute? Quem tem mais força, se é um toiro ou se o mar? Parece não haver dúvidas, para quem arbitra a contenda. É o mar, com que se briga oito a dez dias a fio numa tormenta. As valentias tornam-se mais evidentes para essa luta continuada, mais dura do que a pega de caras ou de cernelha, à qual não se nega valor… Os campinos ficam cabisbaixos – o Vouga triunfa do Tejo. Mas a viagem prossegue nesse glorioso dia de Verão, e continuam literárias as deambulações. Vêm à baila D. Quixote e Sancho Pança, discute-se economia, fala-se de injustiças, quantos pobres são necessários para fazer um rico, que felicidade faz a riqueza, o escritor sonha acordado e avistam o pinhal de Azambuja. «Então caí completamente em mim e recordei-me, com amargura e desconsolação, dos tremendos sacrifícios a que foi condenada esta geração, Deus sabe para quê – Deus sabe se para expiar as faltas de nossos passados, se para comprar a felicidade de nossos vindouros». Afinal, é uma viagem bela, mas de dolorosas lembranças, de invocação das belas raízes da pátria e das limitações e fraquezas dos dias contemporâneos. «Cá estamos num dos mais lindos e deliciosos sítios da terra: o vale de Santarém, pátria dos rouxinóis e das madressilvas, cinta de faias belas e de loureiros viçosos». É um lugar privilegiado pela natureza. Senti-o, pessoalmente, quando o meu amigo Pedro Canavarro me levou à janela mítica de sua casa, que era a de Passos Manuel, para avistar o panorama descrito pelo poeta de «Folhas Caídas». É algo de sublime que liga uma das grandes descrições da literatura portuguesa a uma das paisagens mais significativas da nossa terra.
 
NA CASA DE PASSOS MANUEL
«Comemos, conversámos, tomámos chá, tornámos a conversar e tornámos a comer. Vieram visitas, falou-se de política, falou-se de literatura, falou-se de Santarém, sobretudo, das suas ruínas, da sua grandeza antiga, da sua desgraça presente. Enfim, fomo-nos deitar». Neste ponto, devo invocar o zelo fantástico que Pedro Canavarro e a sua Fundação têm posto em garantir que a impressão deixada nas «Viagens» seja uma lição para o presente. Hoje, sentimo-nos muito bem a chegar a Santa Maria da Alcáçova… E podemos compreender melhor que nunca, o que disse o poeta: «Nunca dormi tão regalado em minha vida. Acordei no outro dia ao repicar incessante e apressurado dos sinos da Alcáçova. Saltei da cama, fui á janela, e dei com o mais belo, o mais grandioso e, ao mesmo tempo, mais ameno quadro em que ainda pus meus olhos». A descrição é bem conhecida: «No fundo de um largo vale aprazível e sereno, está o sossegado leito do Tejo, cuja areia ruiva e resplandecente apenas se cobre de água junto às margens, donde se debruçam, verdes e frescos ainda, os salgueiros que as ornam e defendem…». Trata-se de uma autêntica e atualíssima lição sobre o património cultural, feito de pedras mortas e vivas, de tradições e de pessoas, de paisagens e de monumentos, de hábitos e de costumes, de diálogo entre gerações, de ligação entre a herança e a criação cultural. E Garrett apela intensamente para que o património não seja esquecido: «Ergue-te, Santarém, e dize ao ingrato Portugal que te deixe em paz, ao menos nas tuas ruínas, mirrar tranquilamente os teus ossos gloriosos, que te deixe em seus cofres de mármore, sagrados pelos anos e pela veneração antiga, as cinzas dos teus capitães, dos teus letrados e grandes homens. Diz-lhe que não vendam as pedras dos teus templos; que não façam palheiros e estrebarias de tuas igrejas; que não mandem os soldados jogar pela com as caveiras de teus reis, e a bilharda com as canelas dos teus santos»…
 
A NARRATIVA ESSENCIAL
Para o romancista, deveria então começar, na narrativa essencial, numa habitação antiga, entre árvores, com uma misteriosa janela. «Encantava-me, tinha-me ali como num feitiço. Pareceu-me entrever uma cortina branca… e um vulto por detrás». É o enredo que se inicia. E Garrett imagina romanticamente um vulto feminino e lembra o rouxinol de Bernardim Ribeiro, «o que se deixou cair na água de cansaço». E há os olhos verdes, a janela entre as ramagens e uma menina dos rouxinóis. No fundo, é privilégio dos poetas estar enamorados até morrer. E para que o romance se desenvolva parte-se de um momento funesto, dois anos antes da paz, o de 1832. Uma senhora de idade avançada trabalha com a sua dobadoira e chama a neta, que se apronta a responder, para desembaraçar a meada da avó, cega de gota serena, paciente e resignada, sabedora das tragédias que se desenham. O quadro está definido, romanticamente sereno, nas aparências, mas pleno de incertezas dramáticas de um tempo de divisão e de guerra. Conversam a avó e a neta quando chega Frei Dinis, religioso franciscano, austero guardião de S. Francisco de Santarém. Garrett logo nos esclarece não gostar de frades. Moral e socialmente, não os considera, mas «no ponto de vista artístico», o frade faz muita falta. «O frade era, até certo ponto, o contraponto do D. Quixote da sociedade velha, enquanto «o barão é, em quase todos os pontos, o Sancho Pança da sociedade nova». Há uma atmosfera de presságios e previsões. Num ápice, os planos da viagem e da novela fundem-se, como que por encanto. Assim Garrett encontra as personagens romanescas da história misteriosa, a partir do que se vai urdir, tendo como epicentro a «menina dos rouxinóis». É o clima de uma sociedade em guerra civil que toma a ribalta. D. Quixote surge como símbolo do mito, na sua variedade e complexidade. Como lidar, afinal, com a imaginação, sem que tudo não se assemelhe à loucura? Sancho Pança apela a ter os pés firmados na terra. No romance, Carlos está dividido entre sentimentos contraditórios e inconciliáveis. Georgina traz consigo a avidez da conquista do coração de Carlos. É um sentido trágico que se desenha. Carlos, Joaninha e Georgina constituem o triângulo de sentimentos contraditórios que apontam para um fim funesto. Carlos apenas se ama a si mesmo. A lógica individual contrapõe destinos diferentes e contrapostos. Joaninha e a avó integram-se no panorama idílico que atrai o autor a um lugar fadado para o triunfo do amor. Carlos está dilacerado, fazendo coexistir dentro de si sentimentos paradoxais de solução impossível. Afinal, sente-se lançado como instrumento da força do destino. Quando descobre ser filho de Frei Dinis, símbolo da sociedade antiga, tudo se precipita. Dir-se-á que é a tragédia que se consuma, depois de prenunciada em subtis sinais. E a viagem, como uma vida, dissipa-se. Joaninha enlouquece e morre, Georgina professa na vida religiosa, perecendo para o mundo, a avó enlouquece e Frei Dinis prossegue um calvário de expiação das suas faltas. Carlos, esse cai no absoluto indiferentismo. «Fez-se o que chamam cético, (…) morreu-lhe o coração para todo o afeto generoso, e deu em homem político ou em agiota». Assim, engordando e enriquecendo, é barão e vai ser deputado qualquer dia… «Quando vejo os conventos em ruínas, os egressos a pedir esmola e os barões de berlinda, tenho saudades dos frades». Garrett sente-se profundamente desiludido, apesar de ser um dos bravos da vitória liberal. Nessa viagem a Santarém, o dramaturgo sente que os ideais pelos quais combatera estão a desvanecer-se. O progresso é financiado com dinheiro dos barões. E o que ficou? «O materialismo estúpido, alvar, ignorante, devasso e desfaçado, a fazer gala da sua hedionda nudez cínica no meio das ruínas profanadas de tudo o que elevava o espírito»…

Guilherme d’Oliveira Martins

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