A Vida dos Livros

De 2 a 8 de outubro de 2017.

Acaba de ser publicada Claridosidade, Edição Crítica (Rosa de Porcelana Editora, 2017), com organização de Filinto Elísio e Márcia Souto, uma preciosa reedição fac-similada dos nove números de “Claridade – Revista de Arte e Letras” (1936-1960), com a qual passamos a dispor de nova e importante investigação sobre um dos movimentos mais interessantes do mundo cultural da língua portuguesa – a partir de Cabo Verde.

DA MORABEZA À «CLARIDADE»

Morabeza é uma palavra, vinda de Cabo Verde, que significa manifestação de afeto. Em Chiquinho, Baltasar Lopes da Silva usa o significado amorabilidade – e sentimos nela a força da amabilidade e da afabilidade… Ao falar de palavras suscetíveis de unir em português, saudade e morabeza encontram-se naturalmente. Mas, por razões literárias e culturais, claridade merece também atenção. Desde que visitei pela primeira vez Cabo Verde, “claridade” tornou-se uma palavra familiar, como morabeza, mas por referência ao grupo extraordinário que criou uma revista e um movimento que, a um tempo, foram sinais de identidade e marca de abertura e de modernidade.   «Claridosidade» é uma obra que fazia muita falta. Com estudos que atualizam, completam e consolidam muitos dos conhecimentos já disponíveis sobre os “claridosos”, passamos a contar com um conjunto de ensaios que não só permitem um melhor conhecimento da evolução cultural moderna cabo-verdiana, mas também garantem uma visão serena e distanciada sobre a afirmação de uma rica identidade no seio das culturas da língua portuguesa. Fica claro que a revista representou a grande eclosão da modernidade em Cabo Verde, “reconfigurando a crioulidade, definida por José Luís Hopffer C. Almada como o mais eficaz construto sociológico e identitário surgido no arquipélago, e marcando um novo universo de ‘reverberações literárias cabo-verdianas’, algo pioneiro no contexto das literaturas africanas de expressão portuguesa”. Como salienta João Lopes Filho, num texto fundamental, a génese da revista não corresponde a um só momento, ou a uma iniciativa pontual, uma vez que há uma evolução, abrangendo três fases: o período de arranque e reflexão, à volta do “Círculo Cultural” em Fonte Cónego, com João Lopes (1922); a fase da “Tertúlia”, na cidade da Praia (1928) e finalmente o aparecimento da revista no Mindelo (1936). Como Manuel Brito-Semedo confirma: Baltasar Lopes, Manuel Lopes, João Lopes, Jaime Figueiredo, Félix Monteiro, Manuel Velosa e Jonas Whanon encontram-se em S. Vicente nos anos vinte e trinta. É a geração que “fincou os pés na terra cabo-verdiana e ousou pensar o problema dos homens destas ilhas, constituindo-se num marco. Dessa altura a esta parte Cabo Verde evoluiu muito, começando por ter tomado o seu destino nas suas mãos e a sua literatura abriu-se ao mundo, universalizou-se”. Citando Manuel Lopes: “um grupo de amigos pensou que se deveria criar uma revista que permitisse romper com a tradição clássico-românica de motivos alheios à nossa realidade”. E Baltazar Lopes recorda que a palavra Claridade teve uma dupla influência – a de um grupo progressista da Argentina e a do círculo a que pertencia Henri Barbusse (Clarté). Saliente-se, aliás, a ousadia do grupo, ao publicar, contra todas as orientações do regime, na primeira página do primeiro número, em crioulo, os poemas “Lantuna & 2 Motivos de Finaçom (batuques da Ilha de Santiago)”. E vários são os sinais no sentido de se reconhecer que a “Claridade” antecipa e assume uma consciência cultural e social própria, apesar da conhecida posição crítica de Onésimo Silveira, cujo texto “Consciencialização na Literatura Cabo-verdiana” (1963) se encontra reproduzido na presente obra. Aí se diz que “os jovens que viriam a fundar a revista “Claridade” tiveram uma formação exclusivamente europeizante”, o que corresponderia a uma literatura inautêntica que não poderia conduzir à consciencialização.

LÍNGUA DE VÁRIAS CULTURAS…

A obra agora publicada reconhece no movimento “claridoso” um contributo muito relevante, complementar de outras manifestações culturais subsequentes, que culminariam na independência do país-irmão. E não esqueço o muito que tenho usufruído da reflexão sobre a rica cultura cabo-verdiana mercê do diálogo com bons amigos – desde o saudoso Corsino Fortes, passando por Germano Almeida, Vera Duarte ou Manuel Brito-Semedo… É significativo que, entre os textos ora dados à estampa, Maria de Fátima Fernandes defina a elite claridosa como um grupo de intelectuais predispostos a refletir e a ler a sociedade quer na dimensão local e identitária, quer na relação com a modernidade – o que aponta num sentido aberto e universalizante. Alberto Carvalho cuida dos antecedentes, enquanto Simone Caputo Gomes enfatiza a grande importância da revista na história da literatura cabo-verdiana e na nação crioula, como um conjunto, cujas existência e resistência são significativas. Aliás, hoje, ao lermos a correspondência do jovem Amílcar Cabral, percebemos porventura melhor a importância do projeto “claridoso” na sua projeção no médio e longo prazos – como realidade complexa, que não pode ser confundida nem com os percursos individuais ou a obra própria de alguns dos seus promotores iniciais nem com as limitações naturais de intervenção em diversos momentos históricos. “Tínhamos de intervir! Mas na óbvia impossibilidade de emprego de meios de ação direta que opção nos restava” – diz Baltasar Lopes. Além do carácter precursor do romance Chiquinho inicialmente aparecido em excertos na revista, onde o português e o crioulo de encontram a cada passo, como na realidade quotidiana, os ensaios “Uma experiência românica nos trópicos” teorizam sobre a mestiçagem e a hibridação linguística e aproximam Cabo Verde e o Brasil, num tema que Jorge Barbosa trata, em termos muito práticos e quase quotidianos em “Carta para Manuel Bandeira”. “Aqui onde estou, no outro lado do mesmo mar, / tu me preocupas, Manuel Bandeira, / meu irmão atlântico…”. E como afirma Nhô Baltas nos textos referenciados: “O núcleo inicial dos crioulos obedeceu a necessidades urgentes de simplificação de uma língua rica; mas condições especiais determinaram a seguir um enriquecimento ‘cultural’ progressivo do arquipélago. Chegou-se a esta situação: um flagrante desajustamento (no aspeto social muitas vezes doloroso) entre uma linguagem extraordinariamente simplificada na estrutura gramatical e uma cultura progressivamente enriquecida no sentido europeu”. E deparamo-nos com o natural encontro entre uma língua de várias culturas e uma cultura de várias línguas, que Baltasar Lopes ilustra de forma exemplar – em condições que hoje, porventura, somos capazes de compreender melhor. E, como Urbano Bettencourt afirma, há uma irradiação açoriana da “Claridade”, uma solidariedade na Macaronésia e uma “circulação atlântica das culturas”… “Claridosidade” representa, assim, muito mais do que uma referência histórica de Cabo Verde – é um ponto de encontro e uma marca clara de identidade e de sentido universalista…

Guilherme d’Oliveira Martins

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