A Vida dos Livros

de 2 a 8 de Junho de 2014

«Nova Teoria do Sebastianismo» de Miguel Real (D. Quixote, 2014) permite-nos compreender, à luz dos nossos dias, a exigência de encontrar caminhos novos de superação da mediocridade e da indiferença. Não se trata de uma receita para uso imediato, mas de uma tomada de consciência crítica.

MEMÓRIAS DE POVO ANTIGO 
As memórias de um povo antigo, com nove séculos de história, são sempre múltiplas e demonstrativas. Joel Serrão, em «Do Sebastianismo ao Socialismo em Portugal» (Horizonte, 1969), lembra que as energias nacionais, que possibilitaram a Restauração, principiaram no Brasil. Como demonstrou Jaime Cortesão, «sem o açúcar brasileiro não teria havido 1640» e o Padre António Vieira certamente não teria sido empolgado no impulso que o levou a defender o Quinto Império. Nunca há razões exclusivas para os factos históricos, há sempre uma convergência de fatores, mas há elementos de continuidade que merecem atenção. Diante dos sinais de crise, como os que temos sentido nos últimos anos, urge recusar as simplificações. E se referimos o caso de 1640 (como poderíamos lembrar 1383), é para tornar claro que a vontade emancipadora teve de encontrar motivações fortes e variadas. A guerra dos trinta anos e o cardeal Richelieu ajudaram os conjurados portugueses e a sua causa, mas houve ainda a simultaneidade do conflito da Catalunha, o centralismo do conde duque de Olivares, a crise económica, a carestia de vida, o aumento dos impostos, o descontentamento popular, protagonizado pelo Manuelinho nas alterações de Évora, além, naturalmente, do açúcar brasileiro, a que em breve se somaria a exploração do ouro… Tudo se adicionou à vontade das elites e dos povos. E quando hoje se fala de dificuldades, não podemos esquecer que já houve momentos mais difíceis, e que os séculos de existência de Portugal serviram para fortalecer a capacidade crítica e de resistência, com o mesmo sentido prático que levou «um velho, de aspeito venerando / Que ficava nas praias, entre a gente /(…) com saber só de experiências feito» a levantar a sua voz no Restelo. As dificuldades reforçam os ânimos, enquanto os êxitos momentâneos costumam ser maus conselheiros. Tal movimento pendular, leva-nos a oscilarmos entre as melhores lembranças e as mais negras hipóteses de depreciação de nós mesmos. Essa a nossa experiência multissecular, de que temos sabido libertar-nos.
 
A IMPORTÂNCIA DAS HUMANIDADES
O facto de Vasco Graça Moura nos ter deixado tão cedo, obriga-nos a recordar a sua persistência no combate pela qualidade na cultura. No seu percurso de poeta, escritor, ensaísta e cidadão, empenhado na coisa pública, nunca deixou de salientar a importância das Humanidades, como convergência da literatura e do pensamento, da língua e da leitura, mas, mais do que tudo isso, como ponte lançada à investigação científica e tecnológica, envolvendo diversas áreas esquecidas na cultura e na educação, em nome do fecundo diálogo entre saberes e experiências. Afinal, as Humanidades não se restringem ao domínio puramente literário, como tem salientado Vítor Aguiar e Silva. A preservação da memória do tradutor da «Divina Comédia» de Dante obriga a valorizarmos essa dimensão humanista e universalista. Por outro lado, e continuando a invocar amigos inesperadamente desaparecidos, não esquecemos José Veiga Simão, que compreendeu cedo a necessidade decisiva de tornar a educação um fator de emancipação na cultura portuguesa, dizendo: “um princípio fundamental que não me canso de repetir (…) é o da necessidade de uma autêntica democratização do ensino que, sem exceção, permita a qualquer jovem ocupar na sociedade o lugar que lhe compete em exclusiva dependência da sua capacidade intelectual e sem condicionalismos sociais e económicos”. Lembro ainda Mário Quartin Graça, que no Brasil e em Espanha e na sua permanente ação em prol da língua e da cultura portuguesa (designadamente na América Latina), soube fazer frutificar as melhores manifestações da nossa criatividade, deixando-nos um programa de homenagem a Miguel de Unamuno, tão próximo de nós. E tenho ainda de homenagear a memória de Rui Mário Gonçalves, cidadão, historiador de arte, crítico e defensor ativo do nosso património cultural, de que tanto ainda esperávamos. 
 
IR ALÉM DO SEBASTIANISMO
No seu ensaio «Nova Teoria do Sebastianismo», Miguel Real leva-nos a pensar para além do que é comum ouvir-se. Não se trata de esperar por alguém ou alguma coisa numa manhã de nevoeiro, reminiscência do mito do rei Artur, nem de acreditar num Estado-messias, mas de encontrar energias capazes de sair da depressão. Para quem recusa o fatalismo e a tentação de pensar que pode haver soluções providenciais, todas as cautelas são, no entanto, poucas. Os exemplos são significativos. E importa perceber que Eduardo Lourenço tem razão ao dizer-nos que só a compreensão crítica dos mitos pode conduzir-nos a um caminho de emancipação. O elemento crítico é fundamental. Antero de Quental, em «As Causas da Decadência» compreendeu-o melhor que ninguém. Não se trata de aceitar qualquer explicação irracional, mas de partir da compreensão de onde vimos e de quem somos, para encontrar caminhos de resposta aos problemas com que estamos confrontados. Daí a importância do saber, da experiência e da prioridade dada à educação, à ciência e à cultura, numa palavra, à aprendizagem como fator de desenvolvimento. O caso de José Agostinho de Macedo é paradigmático, a sua recusa do sebastianismo é paradoxal, uma vez que a sua atitude de recusa da modernidade e do constitucionalismo liberal, levar-nos-ia ao pior dos fatalismos, enquanto o pensamento do Padre António Vieira nos conduz por caminhos de recusa da indiferença e da lógica passadista. Bandarra, o sapateiro de Trancoso, tornou-se anunciador de um «desejado» vivo e não de um «mito» morto ou desaparecido. Longe do saudosismo e de um messianismo que pusesse entre parêntesis a cidadania ativa (como António Sérgio nos alertou), trata-se de cultivar a vontade e o compromisso. O triângulo poético tão caro ao ensaísta de «O Labirinto da Saudade» – Camões, Antero e Pessoa – permite-nos compreender a exigência de nos transcendermos pela ação. E não é tanto o poeta da «Mensagem» que está em causa, mas a autoria do «Livro do Desassossego». E não deve esquecer-se a importância das raízes da cultura popular, enaltecidas por Almeida Garrett, e do papel da vontade na independência, salientada por Alexandre Herculano. Para M. Real: «o mito sebastianista, porque mito, corresponde a uma alucinação mental delirante, sentimentalmente verdadeira embora racionalmente falsa que, desde o século XVII, nas suas contradições e paradoxos, na sua vertente de maravilhoso e de romântico, exprime de um modo profundo o ser e a representação histórica de Portugal, constituindo parte vital da sua identidade cultural, que nenhum racionalismo feroz e nenhuma cientificização da sociedade conseguirão extinguir». Relembra-se o que Fernando Gil afirmou sobre a alucinação ser «o operador natural da evidência». Da evidência da necessidade de uma mobilização para fugir à mediocridade e à irrelevância. Os exemplos incentivam-nos. Eis por que razão se deve falar de um motor ético ou de um aguilhão contra a indiferença, centrados na educação, na ciência e na cultura.

Guilherme d’Oliveira Martins

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