A Vida dos Livros

de 19 a 25 de Maio de 2014

O livro é delicioso e o autor José-Augusto França aproveita duas décadas do século XIX para nos relatar em pormenor o Portugal desse tempo, com proximidade e distância relativamente aos nossos dias. O título é prometedor e o conteúdo é imprescindível para quem queira compreender melhor quem somos e donde vimos: «Memórias do Conselheiro Adalberto Martins de Sousa (1880-1890) – Estudo de factos socioculturais» (INCM, 2014).

UM PERÍODO CHEIO DE PERIPÉCIA

Pode dizer-se que os anos oitenta e noventa do século XIX são decisivos para a compreensão da evolução política portuguesa, antes e depois desse tempo, nos constitucionalismos. Chegando ao fim a influência de Fontes Pereira de Melo e de Anselmo José Braamcamp, chefes dos regeneradores e dos progressistas, percebemos a fragilidade de uma situação que, à míngua de recursos, vivia do crédito e da dívida pública, na ilusão de que essa riqueza permitiria satisfazer a amortização e os juros, conseguindo fazer os melhoramentos. Poderia ganhar-se nos dois tabuleiros: o do progresso e o da satisfação dos credores. A história é conhecida: é verdade que houve uma relativa estabilidade política, baseada, porém, na ilusão do efeito da sementeira de libras. De facto, foi enterrado em 1851 o machado da guerra civil, sob a designação regeneradora. Cartistas, constitucionalistas e «tutti quanti» puseram-se de acordo em fazer um rotativismo. Faltou, contudo, a riqueza estável e duradoura (hoje diríamos, sustentável) que permitisse aliar o fomento à legitimidade política. E a história das finanças públicas tornou-se o drama da dívida, que acabou com o convénio com os credores de 1902, com a garantia humilhante das receitas das Alfândegas de Lisboa e do Porto e cinquenta anos fora dos mercados.
 
COM MUNDO E SENTIDO CRÍTICO…
José-Augusto França dá-nos oportunidade de seguirmos essas duas décadas, através dos acontecimentos mais marcantes, mercê da invenção memorialística de um Conselheiro, nascido em Viana do Castelo e falecido na capital (1829-1890). O autor explica minuciosamente como um longo manuscrito lhe chegou às mãos – a partir de uma zelosa Drª Genoveva de Sousa Almeida. Quando apresentei o livro no Centro Nacional de Cultura cometi a imprudência de dizer que se tratava de uma figura extraordinária; mas o Professor França obtemperou, com a razão e a determinação que lhe conhecemos, que nada de extraordinário tinha este Conselheiro, que apenas, em bom rigor, era um «honnête homme» do seu tempo. Atento, cultivado, dotado de senso comum, conservador aberto, com uma rede de amizades interessante (Ramalho Ortigão, Rafael e Columbano Bordalo Pinheiro, mas também Antero, Oliveira Martins e Eça), Adalberto Martins de Sousa é um bom cicerone do seu tempo. Não temos um Acácio ou um Pacheco, mas apenas estamos diante de alguém com mundo e sentido crítico, sendo funcionário do Banco de Portugal e leitor atento das novidades guardadas e fornecidas pelo «bom Gomes da Férin». Lá está tudo o que é fundamental: o «Portugal Contemporâneo» e «Os Maias», os «Sonetos Completos» de Antero de Quental, Camilo e Cesário, a surpreendente referência à morte de Karl Marx (1883), a «Vida Nova» e os «Vencidos da Vida», os Painéis de S. Vicente de Fora, Soares dos Reis, Fialho de Almeida e D. Pedro II, mas também desde a Conferência de Berlim ao republicanismo. O Conselheiro provinha de uma família que vivera na Rua da Bandeira, em Viana do Castelo, a mesma artéria que deu nome ao célebre banqueiro, o Barão de Porto Covo da Bandeira, Jacinto Fernandes, com Palácio em S. Domingos, à Lapa, e influência significativa no seu tempo, desde o velho Banco de Lisboa, padrinho do Conselheiro e daí uma ligação forte deste à realidade económica e financeira desse tempo. Se é certo que estas «Memórias» tiveram de sofrer uma redução para que pudessem ser dadas à estampa, a verdade é que podemos usufruir plenamente dos comentários fundamentais e dos acontecimentos mais marcantes – desde as comemorações do centenário da morte de Luís de Camões (1880) até ao «Ultimatum» inglês (1890). E lá está, assim, nas entrelinhas a explicação sobre a evolução pendular portuguesa entre a ilusão do sucesso e o peso dramático das dificuldades. Contando com o testemunho do genial Rafael Bordalo Pinheiro («espécie de seguro de bom-humor bem necessário nas tristezas dos dias»), temos a vida satírica do «António Maria», a que o visado achava graça («o Conselheiro era o primeiro a rir-se das imagens em que se via metido»…), apesar das naturais reservas aos comentários mais azedos. «Em 1884 (…) ele foi mostrado como arlequim, em boneco recortado, para armar, proclamado “o maior” em todas as línguas, por todos os jornais do mundo!»; e ainda viria a ser representado, depois de 1886, com uma «coroa de dentes», qual novo pequeno rei… Mas, mais célebre do que a do próprio Conselheiro Fontes, é a caricatura de Zé Povinho, em especial quando «se transforma em Povo, atirando os aparelhos ao ar», libertando-se da albarda…
 
A FIGURA IMPAGÁVEL DO CONSELHEIRO ADALBERTO.
O Conselheiro Adalberto era regenerador, partidário de Fontes, sobre quem diz, no dia tristíssimo da sua morte, que era «estadista moderno, senhor de uma vasta visão reformadora, homem de reflexão e de ação, de criação e de organização, de um labor permanente, tudo sacrificando, de vida pessoal imaculada, ao que entendeu sempre ser uma missão nacional…». Ramalho considerou que com ele «abateu o eixo em que se mantinha e girava toda a evolução da política». E Oliveira Martins que «foi educado pelas ideias do seu tempo (hoje anacrónicas) e propôs-se modernizar Portugal e conseguiu-o. Sarjou o país de caminhos de ferro, inundou-o de capitais estrangeiros, nacionalizou a consolidação da dívida, implantando o livre-câmbio e fez-nos entrar em cheio no regime do capitalismo europeu». Mas o Conselheiro lamenta: «pena é, ou foi, ouso escrevê-lo, que duas personalidades assim (Fontes e O.M.) não tivessem podido entender-se neste país… E como já no reinado do Senhor D. Pedro V, num mal-entendido que perdurou! E vêm-me ao espírito as palavras com que o grande Herculano pretendeu orientar o golpe de Marechal (Saldanha) em 1851, prevendo abrir caminho aos portugueses «pondo-lhes nas mãos o mais eficaz e mais seguro instrumento de trabalho: a terra». E se o Conselheiro fala sempre do outro partido, como «progressista», entre aspas, não deixa de lembrar as qualidades de Anselmo José Braamcamp, com quem Oliveira Martins se entendera: «coube-lhe então (11.8.1869) a ingrata tarefa da pasta da Fazenda, e foi aí que mais diretamente, no Banco (de Portugal) tive a honra de o conhecer. A semana dramática de Agosto de 1869, à beira da rotura de crédito, foi levada a bom termo graças ao empenho e à competência do ministro; e de tal modo ao seu empenho que comprometeu os seus próprios haveres, assinando pessoalmente muitas letras de suprimento do Tesouro». Ou seja, o próprio Braamcamp respondeu com os seus bens pessoais às obrigações do país. E o Conselheiro recorda ainda a atitude tonta do Marechal Saldanha no golpe de Maio de 1870, as tensões entre a «unha branca» (de Loulé e Braamcamp) e a «unha preta» (do Conde de Valbom), e a união dos históricos e dos reformistas do Bispo de Viseu no Pacto da Granja (1876) e a continuidade do rotativismo… Os tempos repetem-se. 
 

Guilherme d’Oliveira Martins

Subscreva a nossa newsletter