A Vida dos Livros

De 19 a 25 de janeiro de 2015.

A Academia Brasileira de Letras e a editora Glaciar lançaram uma iniciativa de grande significado, que se propõe publicar em Portugal, nos próximos anos, a coleção «Biblioteca da Academia», constituída por 25 obras fundamentais da literatura e da cultura brasileiras, com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian.

MACHADO DE ASSIS, MESTRE ABSOLUTO
Procura-se dar «uma visão panorâmica altamente representativa da produção literária brasileira por meio das obras dos seus escritores académicos nos campos da ficção, da poesia e do ensaio». Os primeiros quatro volumes já distribuídos, caracterizam-se por um grande cuidado na fixação de textos e no enquadramento cultural e literário. Falamos de «Os Romances» de Machado de Assis; de «Dialética da Descolonização de Alfredo Bosi; de «Os Sertões» de Euclides da Cunha e da «Poesia Completa» de João Cabral de Melo Neto. Trata-se de uma ação fundamental para tornar acessível ao público português obras referenciais da cultura brasileira, por vezes menos conhecidas entre nós, implicitamente ficando lançado o desafio para reforçar, nos dois sentidos, o conhecimento mútuo das culturas portuguesa e brasileira, já que a cultura contemporânea de Portugal é mal conhecida no Brasil. Ao começar com «Os Romances» de Machado de Assis (1839-1908), conta este volume, de cerca de 1550 páginas, com o prefácio e fixação de texto de Luís Augusto Fischer, com notas de Olívia Barros de Freitas. Machado é, sem dúvida, o mais importante escritor da literatura brasileira do século XIX. Era filho de um mulato e de uma portuguesa emigrada, sendo um autodidata, com uma carreira prestigiada de funcionário público. O casamento com uma portuguesa de grande cultura – Carolina Xavier de Novais – permitiu-lhe contar com um relevante apoio na produção literária e na exigência criadora. Foi autor de nove romances, de mais de 200 contos, de centenas de crónicas, além de peças de teatro, poemas e ensaios críticos. A singularidade da sua obra prende-se com a transição que viveu entre o Império e a República e a passagem do trabalho servil à emancipação social. O naturalismo e o realismo assumidos na sua criação elevam Machado de Assis acima das dimensões limitadas da cultura de uma antiga colónia, distante dos grandes centros civilizacionais. Conhecedor e leitor atento do que de melhor se fazia na literatura europeia pôde ganhar em originalidade e argúcia descritiva, dando-nos a conhecer através de enredos atraentes e intensos a realidade que o cercava e que tinha características muito próprias. Apesar da sua timidez e da epilepsia que o condicionava, soube tornar-se um excecional artífice de uma literatura que, com ele ganha maturidade, projetando para fora e para os nossos dias a especificidade da sociedade em que viveu, empenhando-se ativamente na criação da Academia Brasileira de Letras, de quem se tornou presidente perpétuo. É, pois, de inteira justiça o facto de inaugurar esta belíssima coleção. «Ressurreição» (1872), «A Mão e a Luva» (1874), «Helena» (1876), «Iaiá Garcia» (1878), «Memórias Póstumas de Brás Cubas» (1881), «Quincas Borba» (1891), «Dom Casmurro» (1899), «Esaú e Jacó» (1904) e «Memoria de Aires» (1908) são os romances que Machado de Assis nos legou, e que aqui são publicados. E se «Brás Cubas» é uma excecional placa giratória na obra de Assis, «Dom Casmurro» é, ainda segundo o prefaciador, «o impressionante relato memorialístico (mais um) em que Bento Santiago conta sua vida com uma finalidade central, armar a acusação contra sua ex-esposa, Capitu, em sua opinião uma traidora, que tivera uma filho de outro homem». Estamos perante símbolos literários marcantes na cultura brasileira, e Machado ganhou, por isso, o reconhecimento inequívoco nos diversos horizontes políticos e estéticos. Estilista consagrado, cultor clássico da língua, bom artífice da ironia – usou com mestria todos os ingredientes que lhe permitiram impor-se como um verdadeiro símbolo cultural.

A DIALÉTICA DA COLONIZAÇÃO

Em «Dialética da Colonização», publicada em 1992, de Alfredo Bosi (1936), professor, crítico e historiador da literatura brasileira na Universidade de S. Paulo, deparamos com uma obra reconhecida e premiada, recordando Graça Capinha, da Universidade de Coimbra, a prefaciadora, que nesta obra se chama, premonitoriamente, «a atenção para a hegemonia da cultura universitária tecnicista e da industria cultural, para a pouca atenção prestada às várias formas de cultura popular, para a inclusão neutralizadora das manifestações criadoras individuais e para a repressão das formas críticas onde quer que elas surjam. Poderíamos provavelmente utilizar as mesmas palavras para falarmos da situação global e cada vez mais, aí também os mecanismos de dominação são menos subtis…». Alfredo Bosi, lidando com o passado, procura abrir caminhos para a compreensão do presente… Parafraseando Ferreira Gullar: «o novo é para nós, contraditoriamente, a liberdade e a submissão». É este contraponto que encontramos de modo recorrente nesta obra de referência. Estamos, no fundo, perante a coexistência de duas dialéticas separadas e paralelas: a das palavras de gente como o Padre António Vieira e a das palavras do liberalismo económico traduzido nas práticas de escravatura e extermínio – ou seja, por um lado, o discurso da equidade e da democracia, e, por outro, o da necessidade de competitividade – contradição que corresponde a «uma vasta engrenagem de produzir desigualdades». Trata-se de uma contradição que implica a multiplicidade e simultaneidade de tendências divergentes.

EUCLIDES DA CUNHA E ANTÓNIO CONSELHEIRO

No caso da obra clássica de Euclides da Cunha (1866-1909), «Os Sertões – Campanha de Canudos» (1902), há uma certa ilustração prática da análise de Alfredo Bosi. É a «cultura fronteira» que, de algum modo, se manifesta, com forte enraizamento na dimensão local. E o autor sente-se, ele mesmo, dividido entre as duas atitudes referidas – entre a intervenção militar contra a reação messiânica  de António Conselheiro e o significado profundo da atitude popular. A obra tem edição, prefácio, cronologia, notas e índices de Leopoldo Bernucci (na Universidade de Califórnia-Davis, C.A., USA). Trata-se de um texto extraordinário em que se cruzam diversos estilos, temas e géneros – ensaio, história, ciências da natureza, epopeia, lirismo e drama. Com uma vida atribulada, que termina dramaticamente pelo seu assassinato, temos de situar a figura multifacetada de Euclides da Cunha, como engenheiro, sociólogo, jornalista, geólogo, historiador e poeta, que nos relata uma luta de emancipação e messianismo, que tem suscitado reflexões múltiplas. Mário Vargas Llosa publicou em 1981 «A Guerra do Fim do Mundo», baseada em Euclides da Cunha e na Campanha dos Canudos, o que permitiu renovar o interesse pelo episódio e pela obra. Pode dizer-se que sem o interesse e o empenhamento de Euclides, o episódio dos Canudos ter-se-ia resumido a uma campanha militar contra um movimento messiânico e monárquico. Euclides da Cunha escreveu uma obra-prima do jornalismo e da literatura, resumindo, com revolta, o que sentiu ao presenciar o dramático episódio: «Aquela campanha lembra um refluxo para o passado. E foi, na significação integral da palavra, um crime. Denunciemo-lo». Ariano Suassuna considerou, aliás, Canudos como um acontecimento que leva à compreensão do Brasil complexo, envolvendo a componente «oficial e mais clara» e a componente «real e mais escura», que Euclides foi o primeiro a entender.

O GÉNIO POÉTICO DE JOÃO CABRAL

Com organização, prefácio, fixação de texto e notas de António Carlos Secchin, Professor Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a «Poesia Completa» de João Cabral de Melo Neto (1920-1999) constitui um acervo notabilíssimo de um dos maiores poetas da língua portuguesa. Natural do Recife e primo de Manuel Bandeira e Gilberto Freyre, foi diplomata, com atribulada carreira, tendo sido nos anos oitenta cônsul geral na cidade do Porto. O seu texto de maior sucesso é «Morte e Vida Severina» (1955), levado à cena com música de Chico Buarque de Holanda. Trata-se do encontro com a componente real do Brasil, para regressarmos a Suassuna. «Compadre José, compadre, / que na relva estais deitado; / conversais e não sabeis / que o vosso filho é chegado? / Estais conversando / em vossa prosa entretida: / não sabeis que vosso filho / saltou para dentro da vida? / Saltou para dentro da vida / ao dar seu primeiro grito; / e estais aí conversando; / pois sabei que ele é nascido». É um Natal do dia a dia do nordeste brasileiro entre o desespero e a esperança… João Cabral procurou, assim, ser cuidadoso artífice da palavra, com o cinzel do rigor. «Poema é composição, / mesmo da coisa vivida, / um poema é o que se arruma, / dentro da desarrumada vida». E se formos às influências portuguesas – poucas, mas marcantes – encontramos Cesário Verde, Camilo e Sophia de Mello Breyner. «Cesário Verde usava a tinta / de forma singular: não para colorir / apesar da cor que nele há» («Serial»). Já Camilo é invocado no drama da cegueira e do suicídio: «Ficaste cego? Foi a última / gota de água desse suicida, / quando matando-se deu à fala, / com os mesmos metais, outra liga»… A proximidade com a autora de «Mar Novo» é maior e inequívoca: «Sophia vai de ida e de volta (e a usina); / ela desfaz-faz e faz-refaz mais acima, / e usando apenas (sem turbinas, vácuos) / algarves de sol e mar por serpentinas. / Sophia faz-refaz, e subindo ao cristal, / em cristais (os dela, de luz marinha). De Pessoa não se sente rasto, mas sim do antigo jogo dos trovadores, como em «Morte e vida severina»… Afinal, em João Cabral há uma «educação pela pedra», lição moral, na cidade, de fora para dentro, e no Sertão, de dentro para fora. «Lá não se aprende a pedra: lá a pedra, / uma pedra de nascença, entranha a alma»… Os quatro primeiros volumes da «Biblioteca da Academia» têm uma íntima coerência, que lhes vem do fascínio de entender…

Guilherme d’Oliveira Martins

Subscreva a nossa newsletter