A Vida dos Livros

De 17 a 23 de agosto de 2015

Ao celebrarem-se os oito séculos da «Magna Charta Libertatum» (1215), nada melhor do que recordar Isaiah Berlin, autor de «A Busca do Ideal» (trad. portuguesa de Teresa Curvelo, Bizâncio, 1998), um dos grandes pensadores políticos do século XX, para quem o pluralismo é conquista essencial da tradição iniciada pela primeira pedra do constitucionalismo moderno.

SÓ O PODER LIMITA O PODER

Falar hoje da Magna Carta de 1215 é, antes do mais, lembrar que é um instrumento primordial de limitação do poder e consagração do princípio segundo o qual só pelo compromisso entre os diferentes atores de uma sociedade e através do pluralismo de valores, não confundível com relativismo, é possível organizar a vida social e política. Sabemos as condições adversas que levaram João Sem Terra a aceitar as exigências impostas pelos barões do reino, que invocaram os ancestrais direitos definidos na invasão normanda do século XI. Também conhecemos a reserva mental que o monarca tinha relativamente aos constrangimentos consagrados. O certo, porém, é que a evolução histórica levou a que a Magna Carta se tenha tornado, simbolicamente, o primeiro elemento da mais antiga Constituição material em vigor, tal como hoje a entendemos, com influência decisiva nos séculos subsequentes, em especial até à Gloriosa Revolução (1688-89) – que estabilizou e aprofundou as orientações fundamentais impostas pela nobreza ao frágil soberano e depois assumidas pela Câmara dos Comuns. Há dois domínios em que o documento histórico é decisivo, sendo de enfatizá-los menos pela sua originalidade do que pela permanência e durabilidade: um respeita às garantias criminais, no tocante ao «habeas corpus» e à proibição de condenação sem culpa formada (“Nenhum homem livre será preso, aprisionado ou privado de uma propriedade, ou tornado fora-da-lei, ou exilado, ou de maneira alguma destruído, nem agiremos contra ele ou mandaremos alguém contra ele, a não ser por julgamento legal dos seus pares, ou pela lei da terra”), e o outro refere-se à impossibilidade de lançamento de tributos a pagar, na circunstância pelos senhores feudais, sem o respetivo consentimento. Se o primeiro ponto tem a ver com os direitos individuais, o segundo reporta-se à organização do Estado, apresentando a matriz do que Montesquieu referirá como separação e interdependência de poderes, pedra angular do constitucionalismo. E se é a continuidade o elemento inovador da Magna Carta, tal deve-se à consagração de um modo concebido pelos barões (que João Sem Terra não aceitou) de assegurar o respeito dos compromissos assumidos no que hoje designamos por representação e que daria lugar ao consentimento dos cidadãos em matéria tributária – «no taxation without representation». Trata-se da cláusula 61ª, conhecida como “de segurança”, a mais extensa do documento, que estabelecia uma comissão de 25 barões, com poderes para alterar uma decisão régia, até mesmo pela força se necessário. Assim, apesar da grande fragilidade inicial da Magna Carta, o certo é que o tempo veio a revelar a indispensabilidade dos instrumentos aí consagrados. A Magna Carta de 1215 só ganharia, porém, uma força estatutária (ou constitucional) em 1225 e sobretudo em 1297. Nesse sentido, o simbolismo do documento não deve ser visto como se tratasse de uma revolução, mas sim como o início de um processo longo, consolidado em vários séculos – e sempre tendo em conta os direitos patrimoniais e a proteção da liberdade individual…


OS DOIS CONCEITOS DE LIBERDADE
Perguntar-se-á por que razão se invoca Isaiah Berlin a propósito de um acontecimento histórico, aparentemente distante das preocupações do célebre autor de «Dois Conceitos de Liberdade». A razão é mais simples do que se possa supor à primeira vista. Antes de mais, a Magna Carta não é um modelo de organização que se tenha imposto à sociedade. A versão inicial, em especial a cláusula 61ª, que viria a revelar-se como decisiva para a continuidade constitucional, só tardiamente se imporia. Nesse sentido, encontramos o rudimento de algo que só muito mais tarde se imporá, e que Berlin compreendeu muito bem: as liberdades afirmam-se em concreto e não de forma abstrata, e os poderes para se exercerem têm de se compensar e limitar mutuamente (como Montesquieu bem nos disse, sobretudo nas «Cartas Persas»). Lembremos o que I. Berlin afirma: «O pluralismo, com a dose de liberdade ‘negativa’ que acarreta, parece-me um ideal mais verdadeiro e mais humano do que os objetivos dos que procuram nas grandes estruturas disciplinadas e autoritárias o ideal do autodomínio ‘positivo’ de classes, de povos ou de toda a humanidade». O que sucedeu em 1215 tem a ver com o código genético da organização política moderna centrada no pluralismo, na separação e interdependência de poderes e na descentralização, que constrói a legitimidade a partir das pessoas e dos poderes locais. Também por isto mesmo John Gray tem chamado a atenção para que não se confunda pluralismo e liberalismo – que o mesmo é dizer que não se julgue que os modelos de organização são exportáveis ou podem ter vocação universalista. Pensar que o modelo de Westminster é reproduzível noutra cultura é simplificação perigosa. Por outro lado, é fundamental compreender a incomensurabilidade e a conflitualidade entre valores. «Ao fim e ao cabo, os homens escolhem entre valores fundamentais; e fazem as escolhas que fazem, porque a sua vida e o seu pensamento são determinados por categorias e conceitos morais essenciais que constituem de todo o modo ao longo de vastos períodos de tempo e de espaço, uma parte do seu ser, pensamento e sentido da sua própria identidade; parte do que os torna humanos». A verdade é que muito se tem discutido sobre os dois conceitos de liberdade de I. Berlin, que já conhecíamos através da análise de Benjamin Constant. Afinal, os sistemas de valores nunca são internamente consistentes. O conflito de valores está sempre presente na vida humana: liberdade versus igualdade, justiça versus misericórdia, tolerância versus ordem, liberdade versus justiça social, resistência versus prudência…Daí que a liberdade dita negativa deva articular-se com a noção crucial de pluralismo. Não estamos perante interpretações diferentes do conceito de liberdade, mas diante de atitudes distintas. E cada uma destas procura um valor fundamental «que histórica e moralmente, tem o mesmo direito de ser incluído entre os interesses mais profundos da humanidade»…

 

COMBATER O FATALISMO
A atitude intelectual própria de Berlin situa-se no combate ao pesadelo do determinismo. O homem afirma-se porque decide. O fatalismo é contraditório com a humanidade. Não bastam os princípios abstratos, é indispensável partir da diversidade cultural, da tradição, do que permanece, para entender o que muda. Como já se disse, os dilemas que enchem a vida só podem resolver-se pela decisão racional, compreendendo a sociedade como um lugar de conflitos e como um permanente apelo à sua regulação pacífica, não em nome das construção de uma sociedade boa e perfeita, mas como um «modus vivendi», capaz de perceber o pluralismo e a autonomia pessoal, como marcas indeléveis da dignidade humana. O respeito mútuo, a compreensão das diferenças e o uso da razão marcam a sociedade em que vivemos, como um espaço fecundo em que somos livres, mas sabemos que nunca atingiremos a idade de ouro. E a Magna Carta, na sua aparente fragilidade, aponta nesse sentido.         

Guilherme d’Oliveira Martins

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