A Vida dos Livros

De 16 a 22 de março de 2015

Nascida no outono de 1980, a «Nova Renascença» foi, graças ao impulso de José Augusto Seabra, um baluarte importante das tradições culturais do Porto e da sua projeção no contexto da identidade portuguesa, encontrando as suas bases nas referências da «Renascença Portuguesa» e de «A Águia».

OLHAR PARA DIANTE
Ao lermos nos dias de hoje o manifesto que acompanhou o nascimento da «Nova Renascença», verificamos haver uma atualíssima preocupação no sentido de fazer do germinar das ideias uma força de motivação e de inovação, contra a indiferença e a demagogia. «Agora como no início da República (dizia-se então), as esperanças políticas não ganharão consistência se não forem alicerçadas na busca de uma simbiose entre as raízes civilizacionais mais profundas e a modernidade mais atualizada, em que traditio e revolutio mutuamente se fecundam, transformando mas não adulterando, a mentalidade e o comportamento do homem português». Indo às raízes, seria indispensável olhar para diante (como diria em 1915, há exatamente cem anos, António Sérgio na sua fundamental «Educação Cívica», publicada nas páginas de «A Águia»). Daí a necessária ligação à continuidade e à transformação, como forças especiais orientadas pela multiplicidade de perspetivas e influências que constituíram a inicial «Renascença Portuguesa» e que José Augusto Seabra (1937-2004) procurou reconstituir no último quartel do século, tirando lições do passado e projetando-as no devir. Ao lado de Veiga Pires, Salgado Júnior e Sant’Anna Dionísio, membros da antiga «Renascença», encontramos, com Seabra, personalidades marcantes da vida portuense: Albano Martins, Alfredo Ribeiro dos Santos, António Corte-Real, Dalila Pereira da Costa, Diogo Alcoforado, Francisco Laranjo, Jacinto de Magalhães, João Araújo Correia, Júlio Resende, Manuel Coelho dos Santos, Maria da Graça Pinto, Norma Backes Tasca, Rui Magalhães, Salvato Trigo e Zita Magalhães. Estava em causa, segundo os fundadores, que «o regresso de Portugal à comunidade europeia, sem perda da sua identidade nem abandono da sua missão de povo que, do ocidente ao oriente e do oriente ao ocidente, ligou civilizações e disseminou uma língua múltipla» implicaria «uma forte afirmação dos seus valores e das suas criações, fundamentais para cumprir no futuro aquilo que nem sempre pôde realizar no passado». Havia, pois, um conjunto de ideias do maior interesse e atualidade: o regresso europeu, a salvaguarda da diversidade cultural, a ligação de civilizações, a projeção da língua múltipla (condomínio de diversas culturas), a exigência de um presente e de um futuro para o País com relevância, bem como a responsabilidade de construir uma obra comum aberta, inovadora e positiva. E assim recordava-se o objetivo estatutário inicial da «Renascença Portuguesa»: «Promover a maior cultura do povo português, por meio da conferência, do manifesto, da revista, do livro, da biblioteca, da escola». O Porto seria um lugar por excelência para essa continuação. Teixeira de Pascoaes dissera, afinal, que a cidade «berço da Renascença, (foi) o lugar carinhoso e natal onde ela desabrochou para criar raízes em toda a terra portuguesa». E assim se recordava como «A Águia» pretendeu criar «um lugar onde todos os princípios e ideias fraternizam». E foi esta ideia fecunda de liberdade que animou a «Nova Renascença», como animara a antiga, tendo sido «A Águia» alfobre de quase tudo o que se desenvolveria no século XX português, de «Marânus» a Pessoa, de Cortesão a António Sérgio.

RENASCENDO SEMPRE…
José Augusto Seabra compreendeu bem que haveria de se pensar em termos novos a antiga ideia de «Renascença» – como o liberalismo da revolução de 1820 se tinha feito sob a invocação de uma Regeneração, que foi sendo tentada (e ora alcançada, ora não realizada). Renascer deveria ser trilhar diversas vias: «Plurais são os caminhos e abertos os horizontes. Em liberdade os demandaremos. Renascendo, sempre». Não por acaso, Agostinho da Silva fala na sua mensagem ao número primeiro numa realidade futura «em que periferia e centro se confundam, em que lembrança e projeto num mesmo tronco floresçam, em que abstrato e concreto uma só estátua animada formem, em que o Deus que adoremos seja o de Tudo e Nada, sempre em nós, de nós, a nós, por nós, voltando, num perpétuo e momentâneo e parado mover-se de imanência e transcendência, como em simultâneas sístole e diástole: só então Portugal, por já não ser, será». No seu antigo, e às vezes tão mal compreendido, hábito de cultivar paradoxos, o velho andarilho dos mundos da língua portuguesa compreendeu exatamente o que se pretendia e se pretende – fazer das ideias e da audácia de pensar uma matéria-prima de constante aprendizagem. Num texto em que analisa o mito poético da «Nova Renascença» a partir do triângulo Camões, Pascoaes e Pessoa, o diretor literário da revista, José Augusto Seabra, põe o dedo na ferida suscitada por Pessoa relativamente a Camões, temperada pela consciência que Pascoaes tem da importância da poética camoniana na construção do imaginário português: «Repare-se: se Camões “o italianizado Camões” – como diz Pessoa – “respondeu em Português ao movimento da Renascença italiana” – como escreve Pascoaes -, ao Supra-Camões compete, agora, dar por sua vez uma resposta homóloga, derramando-se em termos modernos para Europa.  Mas a Europa de Pessoa (do Supra-Camões) é uma Europa Supracontinental. Como a propósito de Orpheu ele dirá “a Ásia, a América, a África e a Oceânia são Europa”. Reversivelmente, a Europa existe já em Portugal: “Basta qualquer cais europeu – mesmo aquele cais de Alcântara – para ter toda a terra em comprimido”. Os próprios europeus, paradoxalmente, “não são europeus porque não são portugueses”, como diz num artigo publicado em 1923». Sente-se mais o profetismo de Vieira do que as ideias de Camões. O paganismo pessoano entra numa relação dialética como a síntese dos maravilhosos pagão e cristão que o autor de «S. Paulo» não esquece. A identidade e a alteridade tornam o nacional universal e o universal nacional, segundo diferentes atitudes de Pascoaes e Pessoa. Não se trata, porém, da tentação de tornar tudo numa perigosa massa informe, mas de apelar às múltiplas energias criadoras de todo um povo. Que é o «Oriente ao oriente do Oriente» senão um certo Ocidente, futuro do passado? E Jaime Cortesão (prenunciando o seu humanismo universalista) põe a questão: «Pertence este esforço de renascimento quase exclusivamente a poetas? Não é bem certo, embora eles predominem na Renascença Portuguesa. Mas que fazer? Esperemos que venham ajudar-nos os demais Artistas, os sábios e os obreiros de toda a ordem». Curiosamente, nesta tensão que visa a liberdade e a emancipação, José Augusto Seabra recorda a extraordinária explicação de D. António Ferreira Gomes sobre a determinação do Porto em prol da autonomia e da consciência das liberdades cívico-políticas: «no fundo, bem no fundo do seu coração e inteligência, o burguês do Porto nem estava contra o Bispo nem estava pelo Rei: estava por si mesmo e pela cidade livre». Mais subtilmente, «jogando entre o Rei e o Bispo, o burguês do Porto pensaria ganhar nos dois tabuleiros e chegar assim à sua cidade livre dentro da unidade nacional». 

Guilherme d’Oliveira Martins

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