A Vida dos Livros

De 16 a 22 de maio de 2016.

«Uma Outra Memória – A escrita, Portugal e os Camaradas dos Sonhos» de Manuel Alegre (D. Quixote) é uma recolha de textos que acompanham o percurso do poeta, do cidadão, do homem de cultura e nos dão uma visão do Portugal democrático, centrada no culto aberto da memória como matéria-prima fundamental para a defesa e preservação da liberdade. 

UMA LINHA DE COERÊNCIA

Não se trata de uma reunião de textos de circunstância, é mais do que isso. Há uma linha de coerência e uma demonstração da importância das ideias na afirmação da democracia. É de patriotismo prospetivo que aqui se fala, para usarmos a expressão consagrada por António Sérgio. E o certo é que não podemos falar de uma leitura contemporânea do Portugal democrático sem lermos e ouvirmos Manuel Alegre, para quem a contemporaneidade não pode ser plenamente compreendida sem o assumir das raízes históricas de uma cultura antiga, desde os trovadores galaico-portugueses até «Orpheu» e o que mais se seguiu, passando por Camões, Sá de Miranda, Garrett ou Antero. Eduardo Lourenço falou nele de «nostalgia da epopeia» – e o poeta confirma: «eu tenho essa nostalgia. A minha visão de Portugal é uma visão poética, uma visão integradora, em que se misturam poemas, batalhas, revoluções». «Uma luz só luz», lembra Jorge de Sena: «Quando estava no exílio, eu pensava muitas vezes na luz de Portugal. Em um azul que trazia dentro de mim, o azul de Lisboa a certas horas, o azul do Atlântico que, por vezes, é um azul verde cinzento, um azul de sol e bruma, de vento e espuma». Que é a cultura senão essa memória da terra e do mar?

LIBERDADE – MOVIMENTO DE CONSCIÊNCIA

Octávio Paz disse: «a liberdade não é uma filosofia e nem sequer uma ideia: é um movimento de consciência que nos leva, em certos momentos, a pronunciar dois monossílabos: sim e não». E quantas vezes é mais o não que o sim a funcionar como defesa da singularidade e da autonomia individual contra a «tirania da maioria». Assim o entende o poeta… «Não há liberdade sem liberdades» – não é de abstrações que falamos, mas da coragem de enfrentar a uniformização e a indiferença… E ao longo dos textos aqui reunidos – quer invocando personalidades e caminhos, quer pugnando por ideias e causas – temos a defesa da liberdade individual e coletiva, e a «necessidade e urgência de lutar contra o desencanto e de repor a confiança nas nossas instituições, nos nossos valores e no bem supremo da liberdade». Foi nesse sentido que ouvimos há dias Manuel Alegre, ao receber a 25 de Abril o prémio de carreira da Associação Portuguesa de Escritores, dizer que é preciso dar sinais concretos no sentido da vivência e da confiança na democracia, nas instituições e na rua. «Nunca houve revolução política sem uma poética da revolução. Talvez a crise atual necessite de novo da voz dos filósofos e dos poetas»… E é essa a mensagem dos diversos textos que nos são apresentados: a democracia precisa da força da palavra. «E Camões disse que “em se mudando a vida / se mudam os gostos dela”». Daí a necessidade de descontaminar a linguagem e de restituir às palavras um sentido, para além do «império do dinheiro».

ENIGMA E PERPLEXIDADE

Em textos belíssimos, vamos encontrando ou reencontrando quem fez da vida realizações de pura criação… Uma noite em casa de Sophia de Mello Breyner, fez-se um jogo: «cada um dizia o primeiro verso que lhe vinha à cabeça, tomava-se nota, fizeram-se várias voltas, no fim foi-se ver e para surpresa de alguns, mas não de Sophia, o que saiu mais foi Antero». Miguel Torga, debruçado sobre o Mondego, confessa: «Chego ao fim perplexo diante do meu próprio enigma». Mário Cesariny afirma sobre Natália Correia ser «uma máquina de passar vidro colorido». E Natália, trazendo consigo a flor de D. Dinis, diz que «onde cai é um país». Sobre Eugénio de Andrade – «mais que uma arte poética, é um dom, um instinto, uma alquimia de letras e sons, poesia em estado puro». Pedro Homem de Mello, o nosso poeta talvez mais aparentado com Lorca, «lia quase como quem canta, mas era um cantar outro, que não chegava propriamente ao canto, era um cantar que estava dentro da língua, uma música que se destacava sílaba a sílaba e que até então eu nunca tinha ouvido». Lembramos Herberto Helder e Fernando Assis Pacheco. Celebramos a poesia com Maria Teresa Horta e José Carlos de Vasconcelos, mas temos também o testemunho de António Lobo Antunes e Luandino Vieira. Compreendemos a importância do Barnabé de Mário Cláudio, encontro de Todo o Mundo e Ninguém do «Auto da Lusitânia» – «um diário de bordo de uma peregrinação imaginária, onde o pícaro e o trágico se conjugam e em que na epopeia desconstruída se pressente outra epopeia, ainda que do avesso…». Sobre Eduardo Lourenço, devemos-lhe «uma fantástica viagem por dentro de nós mesmos, na nossa relação com o mundo»… E no lado cívico e político, temos a presença de Mário Soares, Ernesto Melo Antunes, Francisco Salgado Zenha, António Almeida Santos, Manuel Tito de Morais, Fernando Piteira Santos, Álvaro Cunhal, Maria de Lourdes Pintasilgo, César Oliveira, João Pulido Valente, Amílcar Cabral… A dignidade da política é a força da legitimidade democrática. E toca-nos a lembrança de Rui Feijó («há pessoas que pertencem, sem o saber, a desaparecidas ordens de cavalaria»), de José Luís Nunes («um elitista-antifascista»), de Urbano Tavares Rodrigues («prosa fraterna, terna e luminosa»), de Mário Sottomayor Cardia («ele gostava de poesia e compreendia tudo»)… Quase inesperadamente, João XXIII é lembrado por um poema («Porque não sei de Deus não trago preces / Sou apenas um homem de boa vontade») e pelo facto de os carcereiros terem proibido a entrada da «Pacem in Terris» na cela do poeta de «Praça da Canção». Ah! E há a toada da música, tão importante para um poeta: Amália (com Alain Oulman), José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Carlos Paredes ou António Portugal. Em Manuel Alegre, a presença da História, a nostalgia da epopeia, as saudades do futuro articulam-se no inconformismo e no desejo de liberdade e de justiça. Daí a importância dos desafios de hoje: «Fazer a Europa não significa desfazer as nações, tal como sermos membros ativos da União Europeia não significa diluir e muito menos destruir Portugal. E também não significa retirar poderes aos Parlamentos Nacionais e submeter a aprovação das suas decisões a um pequeno círculo de tecnocratas das finanças públicas». «Os camaradas dos sonhos» são motivo de sobressalto e de desafio. Precisamos das «palavras imensas» de que falava Mário Cesariny. «Hoje, como sempre, ser de esquerda é não se resignar e acreditar que é possível ir mais além. Pode ser necessário mudar o programa e a via. Não a atitude. Essa continua a ser aquela que sempre tiveram, os camaradas do não e os camaradas dos sonhos».

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença
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