A Vida dos Livros

De 14 a 20 de setembro de 2015

Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805), que nasceu há dois séculos e meio, é um poeta maior da língua portuguesa. A sua memória deve ser lembrada e a melhor poesia devidamente lida… Recordamo-lo com uma ilustração gentilmente cedida pelo nosso amigo Nuno Saraiva.

UM POETA A DESCOBRIR

Se há poeta e escritor português que se mantém profundamente desconhecido no seu valor e importância, é Bocage, sobre quem correm muitas lendas, em lugar da compreensão do seu talento e singularidade na transição do século XVII para o século XIX, do classicismo para o romantismo – ao lado de Nicolau Tolentino de Almeida. É certo que o seu repentismo, a sua vida aventurosa, a instabilidade e a participação na boémia do seu tempo não o ajudaram a afirmar-se no lugar a que tem direito na cultura portuguesa. David Mourão-Ferreira teve razão ao considerar que o tempo em que viveu foi desajustado, enquanto diversos analistas, como Maria Helena da Rocha Pereira e Jacinto do Prado Coelho, puseram a ênfase na referida transição do classicismo para o romantismo e no caráter dúplice da identidade do poeta e do criador. As profundas mudanças ocorridas na vida política e social no país e na Europa também não o ajudaram a situar-se no lugar proeminente que poderia ter tido. O Romantismo, pela sua força e pela ligação ao importante movimento liberal, se tivesse sido vivido por Bocage ter-lhe-ia dado maior importância. A verdade é que, apesar de poder ter-nos deixado uma obra mais rica, que o seu talento adivinharia, parece não haver dúvidas de que, lida com atenção, a sua multifacetada criação revela um autor maior, a merecer celebração para além dos aspetos caricaturais ou boémios. Aliás, é o último representante de uma tradição, que tem Camões, como primeira figura («Camões grande Camões quão semelhante / Acho o teu fado ao meu quando os cotejo…»), de uma leitura testemunhal da diáspora marítima da Índia. «Modelo meu tu és… Mas ó tristeza!… / Se te imito nos transes da ventura, / Não te imito nos dons da natureza». No lirismo segue as pisadas de Bernardim Ribeiro, atualizadas pela experiência do tempo, cultiva os temas do Amor e da Morte (que o marcam ao longo de toda a vida) e utiliza com mestria a difícil herança clássica do soneto, antecipando algo em que só Antero de Quental se revelará insuperável.

UMA VIDA ATRIBULADA…

Nascido em Setúbal a 15 de setembro de 1765, filho de um antigo juiz de fora e depois advogado, José Luís Soares de Barbosa, e de uma senhora francesa, Mariana Joaquina du Bocage, filha do Almirante que reorganizara a Marinha portuguesa no início do século e sobrinha de Marie Anne Le Page du Bocage, poetisa francesa tradutora do «Paraíso» de Milton, ficou órfão de mãe aos dez anos, assentou praça no Regimento Infantaria nº 7 de Setúbal depois de fazer estudos de francês e latim, alistando-se em seguida na Academia Real de Marinha. Conhecido pelo seu repentismo poético torna-se um protagonista da boémia lisboeta, entre o Rossio, onde frequenta o «Agulheiro dos Sábios» no «Botequim das Parras» de José Pedro da Silva, e o Bairro Alto. Em 1786, como guarda marinha embarca para a Índia na Nau «Nossa Senhora da Vida, Santo António e Madalena». Chegado ao Rio de Janeiro, aí dedica poemas elogiosos ao Vice-Rei, Conde de Figueiró, que, no entanto podem ter tido efeitos contraproducentes, quer pela liberdade de linguagem, quer por serem considerados bajuladores. Segue viagem para a Índia, onde chega em outubro de 1786. Em Nova Goa frequenta estudos de formação de oficiais de marinha e é promovido a tenente. Espírito muito rebelde, deserta depois de ser colocado em Damão (1789) e segue para Macau, onde é absolvido da deserção, cujas razões se mantêm por descobrir.

A NOVA ARCÁDIA LUSITANA

Em 1790, encontramo-lo em Lisboa, desiludido por ver Gertrudes de Noronha – a Gertrúria dos poemas, já casada com seu irmão Gil Francisco («…Por bárbaros sertões gemi, vagante: / Falta-ma ainda o melhor, falta-me agora / Ver Gertrúria nos braços de outro amante»). Apesar de tudo, entusiasma-se com as notícias vindas de Paris, sobre a Revolução. Dedica poemas à liberdade e contra a tirania, relaciona-se com a «Nova Arcádia Lusitana», adota o nome de Elmano Sadino (1791), mas rapidamente entra em conflito com os companheiros, iniciando uma dura série de poemas satíricos muito mordazes. Começa por estabelecer relações de estima com o Padre José Agostinho de Macedo, com quem se incompatibiliza. O primeiro volume de «Rimas» é de 1791, bem como «Os Queixumes do Pastor Elmano» e «Idílios Marítimos». Denúncias em 1797 à Intendência-Geral de Polícia de Pina Manique sobre a autoria de textos ímpios e críticos, de crítica severa do despotismo, levam-no primeiro ao Limoeiro e depois aos calabouços da Inquisição. Aí o processo é rapidamente despachado, indo primeiro para o convento de S. Bento da Saúde e depois para a Casa da Congregação do Oratório, onde é ilibado das culpas de que vinha sendo acusado (1798). Tem a proteção de José Seabra da Silva, e apesar de haver uma nova denúncia por supostamente ser Pedreiro-livre, consegue ficar livre e desenvolver o período mais fecundo da sua vida literária. Em 1799 é publicado o segundo volume de «Rimas». Por proposta do naturalista brasileiro José da Conceição Veloso dedica-se à tradução de poemas didático-científicos (1801). Há um reconhecimento geral sobre a elevadíssima qualidade de tradução e poética destes textos. Em 1804 sai o terceiro tomo de «Rimas» e no ano seguinte manifesta-se a doença que o vitimará – um aneurisma na carótida.

UM FIM DRAMÁTICO

Apesar do reconhecimento da qualidade dos seus escritos, a situação económica do poeta é muito precária. É ajudado por amigos, parentes e pelo comerciante do «Botequim das Parras», José Pedro da Silva, e mora com a irmã Maria Francisca, num modesto andar na travessa André Valente, junto da Calçada do Combro. A trágica situação de saúde e as dificuldades económicas levam a que antigos inimigos com ele se reconciliem, como Curvo Semedo e José Agostinho de Macedo… Morre a 21 de dezembro de 1805, com quarenta anos de idade, dizendo: «Saiba morrer o que viver não soube». É fácil recordar a presença boémia do poeta e a sua popularidade, mais difícil é invocar a sua sólida formação clássica e a facilidade com que conhece os antigos e usa os seus métodos, de um modo inteiramente novo, com uma intensidade sentimental e crítica que liga intimamente dois tempos e duas escolas profundamente diferenciados, permitindo perceber melhor a sua sucessão.

                                                                                                                           Guilherme d’Oliveira Martins

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