A Vida dos Livros

de 14 a 20 de julho 2014

A melhor homenagem que podemos fazer a Sophia de Mello Breyner, como a qualquer poeta, é lê-la, lê-la sempre e interminavelmente. Leia-se agora «Poesia», «No Tempo Dividido» e «Mar Novo», Assírio e Alvim, 2014. É tempo de continuar a ouvi-la!

ESSE GRANDE VAGO QUE HÁ NA LUA…
Lemos: «Sinto os mortos no frio das violetas / E nesse grande vago que há na lua». Sophia de Mello Breyner Andresen é símbolo da cultura portuguesa contemporânea. E qualquer adjetivação diminuiria a sua força e o seu lugar único. A decisão da Assembleia da República da translação do seu corpo para o Panteão Nacional merece um especial apoio, que não pode resumir-se a uma homenagem circunstancial, mas tem de traduzir-se num sentido reconhecimento relativamente à figura de uma das nossas maiores. O meu velho amigo José Manuel dos Santos, ao lançar, em muito boa hora, a ideia, compreendeu bem o extraordinário alcance de um gesto como este, e viu que os espíritos mais lúcidos apoiaram com naturalidade a concretização da iniciativa. E neste ponto, importa deixar claro que cada decisão, cada gesto, cada pessoa tem a sua razão única e singularíssima. Por isso, é a memória de Sophia, e tudo o que significa, que neste momento especialmente interessa, enaltecendo todas as vontades e os espíritos que permitiram à Pátria reconhecer na sua memória a essência e a força profunda da nossa própria cultura. Poderíamos fazer outras alusões e lembrar outros casos, mas nesta circunstância do que se trata é de salientar o «suplemento de alma» que Sophia deu através do exemplo, do talento e de uma força de espírito, que a colocam no centro da perenidade da nossa língua e das suas culturas. E se é símbolo, é-o também pela atitude que sempre soube assumir, nunca numa lógica imediatista ou saudosista, paternalista ou ilusória.
 
VEMOS OUVIMOS E LEMOS…
Nunca foi uma voz acomodada, a de Sophia, ou capaz de baixar os braços perante as injustiças e as adversidades. E, para surpresa de muitos, tomou solidariamente atitudes firmes e inesperadas, como na célebre vigília da Igreja de S. Domingos, na madrugada de 1 de janeiro de 1969 – «Vemos, ouvimos e lemos / Não podemos ignorar (…) / Nos caminhos da terra / Os mapas continuam / De fome e sujeição / E continua a guerra /O cântico da flauta / E a música do banjo /Não podem apagar o concerto dos gritos (…) / O nosso tempo é tempo / De pecado organizado». E se referimos esse dia, temos de nos lembrar do clamor de revolta que significou «Mar Novo», em que Sophia – consciente da importância da História e das responsabilidades pessoais, demonstrou com nitidez que eram aqueles que, supostamente, queriam defender a pátria de antanho com velhos argumentos, os que com maior evidência se limitavam a olhar para trás, como se uma visão estática e ilusória do passado pudesse ser resposta. E foi essa exigência que fez Sophia escrever no final dos anos cinquenta, num tempo dilacerante, o «Poema inspirado nos Painéis que Júlio Resende desenhou para o Monumento que devia ser construído e Sagres»: «Nenhuma ausência em ti cais da partida / Impetuosas velas plenitude do tempo / Euforia desdobrando os seus gestos na hora gloriosa / Do Lusíada que parte para o universo puro / Sem nenhum peso morto sem nenhum obscuro / Prenúncio de traição sob os seus passos». A estranha palavra exprime uma profunda revolta, contra a recusa surpreendente do projeto, vencedor do concurso para o monumento «Mar Novo», proposto pelo irmão de Sophia, o Arquiteto João Andresen… E que significava a ideia de «Mar Novo»? Sophia não se limita a fazer eco do protesto, põe a nu o absurdo de um saudosismo retrospetivo, que recusa a ideia de uma aventura audaciosa orientada para os dias de hoje e para o futuro. Afinal, eram os anúncios de traição que ocupavam o lugar de uma cultura livre, de uma identidade aberta e historicamente enraizada.
 
ENIGMA DA CULTURA PORTUGUESA…
Ao lermos a sua poesia entendemos o enigma da cultura portuguesa: através da distinção entre as realidades e as esperanças, os dramas e as audácias. Em lugar da alternância entre euforia e depressão, Sophia propõe-nos uma serena procura da História como sinal de continuidade e de vida. Vasco Graça Moura disse-nos, por isso: «os que a conheceram ficaram, porventura, a compreender melhor essa sua constante recusa em abdicar da medida que tinha como própria, mesmo nos transes mais fulgurantes da revelação poética. Ressalvadas as metáforas e os outros recursos próprios da escrita, Sophia exprimia-se da mesma maneira na sua coloquialidade imediata, tinha a capacidade de se ‘distrair’ do que não lhe parecia essencial e ia diretamente ao cerne das situações e das coisas. A poesia era para ela ‘uma arte de ser’, uma elevação do solo, como a dança, uma musicalidade dotada de sentido desocultado pelas palavras, a partir da Natureza, da memória, dos meandros da alma…». E em «Lusitânia» está talvez tudo aquilo que somos e nos distingue: «Os que avançam de frente para o mar / E nele enterram como uma aguda faca / A proa negra dos seus barcos / Vivem de pouco pão e de luar». Eis a exigência dos limites e o sonho, eis da compreensão e a determinação. Mais do que todas as explicações vagas, eis que é a poesia de Sophia que pode responder quem somos.
 
PAÍS DE PEDRA E VENTO DURO…
Ao falar de Sophia temos de lembrar uma memória longínqua da criança, ao colo de seu avô, Thomaz de Mello Breyner, talvez em S. João dos Bem-Casados, a ouvir poemas antigos e marcantes, de Camões, de Garrett ou de Antero. Nessa recordação está a referência forte às raízes da poesia portuguesa e da nossa cultura, criando uma intérprete inovadora da genuína tradição. «Por um país de pedra e vento duro / por um país de luz perfeita e clara / Pelo negro da terra e pelo branco do muro / Pelos rostos de silêncio e de paciência / Que a miséria longamente desenhou / Rente aos ossos com toda a exatidão /Dum longo relatório irrecusável…». E é assim que Eduardo Lourenço, numa passagem essencial, nos diz que Sophia completa um vazio deixado por Pessoa. Se a «Mensagem» é ambígua e é feita de elementos contraditórios, que o «desassossego» desconstrói, Sophia não esquece o «espantoso sofrimento do mundo». É que, partindo das raízes, compreendendo a sua renovação permanente, e não esmorecendo: «Sophia inventa para o Dividido, um lar póstumo pelo qual Pessoa sempre suspirou. E em si mesmo integrou uma ausência na qual molhou os seus dedos sem se perder nela. Nela escondeu a sua noite que por ser coroada de estrelas como a de Dante não continha menos o seu peso em lágrimas». Deus é o Ausente por excelência, e não há um duplo idealizado, mas um transcendente fulgor «que como o de uma anunciação põe fim a uma espera confusa para convertê-la em presente pleno, Verbum Caro» (como diz E. L. no prólogo à antologia espanhola «Nocturno Mediodia»). «-Pedra rio vento casa / Pranto dia canto alento / Espaço raiz e água / Ó minha pátria e meu centro // Me dói a lua me soluça o mar / E o exílio se inscreve em pleno tempo». É Portugal que aqui está, delimitado, como Sophia fez com a serenidade que a fez entender a perenidade e a atualidade da liberdade como dignidade do Ser.


Guilherme d’Oliveira Martins

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