A Vida dos Livros

de 12 a 18 de Maio de 2014

«Notre Nihilisme» é o tema central do número de março-abril de 2014 da revista «Esprit», que assinala, de algum modo, os 100 anos do início da Primeira Grande Guerra, interrogando o paradoxo contemporâneo da obsessão dos valores e do triunfo do nada – para o que conta com a coordenação de Michaël Foessel (como o apoio de Olivier Mongin, Jean-Louis Schlegel e Joël Roman) e com uma entrevista do pensador francês Jean-Luc Nancy, para além de um muito interessante inquérito sobre o difícil tema.

SOB O SIGNO DA PALAVRA CRISE

«Na semântica contemporânea da inquietude, a palavra crise é que domina» – quem o diz é Michaël Foessel no pórtico deste dossiê. O niilismo entra, assim, na ordem do dia, segundo o diagnóstico de Nietzsche, coincidindo o seu aparecimento com um momento em que os valores superiores se degradam. A informação em tempo real retira importância à encenação, a «aceleração dos ritmos dá a sensação de se dançar sobre um abismo, donde nada de decisivo pode emergir». No fundo, a sociedade renuncia à composição hierárquica do sentido. Cem anos depois do inesperado e impensável início da Guerra de 14-18, revemos na nossa memória o último século, que Éric Hobsbawm considerou um século curto, numa sucessão perturbadora e desafiante: um período de catástrofes (1914-1944), a que sucedeu a «idade de ouro» europeia dos «trinta gloriosos» de Fourastié (1945-1975). Depois disso, impor-se-ia um «capitalismo intratável», que tomou como refém o movimento democrático saído da queda do muro de Berlim e da abertura política no centro e leste da Europa. Compreendemos, afinal, ainda melhor aqueles que consideraram a Guerra de 14 um autêntico suicídio do velho continente – Jünger, Patocka e Valéry. Deste modo, a pergunta certa a fazer tem a ver com saber-se por que razão se fala de niilismo quando, paradoxalmente, o mundo está saturado de sentido, sendo atravessado por uma lógica de eficiência técnica. Como insiste M. Foessel, «o niilismo não é sinónimo de falta de sentido (o absurdo), mas designa a redução deste a um modelo único: o da eficiência. E é no meio do século XIX (…) que o tema se impõe, numa época em que triunfam o positivismo e a fé na ciência. A crença na convergência entre os progressos da técnica e os da humanidade moral atingiu o seu pleno. Desde essa época, poderíamos admirar-nos que o niilismo emergisse num contexto marcado por tanto otimismo». Contudo, o niilismo não designa tanto o «desencantamento do mundo», mas uma reação negativa a este. O ponto de situação do atual debate europeu revela, por isso, uma reedição de todas essas perplexidades. Mesmo os partidários da União Europeia descobrem que um perigoso sentimento de indiferença e de demissão atinge tanto os cidadãos como as instituições europeias. Há quem declare querer a Europa, mas não se sabe o que a Europa quer. Aliás, na sequência de Husserl, Jan Patocka diz-nos que o niilismo provém da naturalização do sentido, que postula o primado do quantificável e do representável, mais do que um outro entendimento ligado ao sentido. A racionalidade extrema, que procurámos aplicar à ação humana e à economia simbolizam a ingenuidade que consiste em tentar submeter ao real as categorias da razão abstrata.

EVOCAR O NIILISMO DO PRESENTE
O indivíduo contemporâneo não sofre de descrença, ele é, ao contrário, convidado a crer no nada, como umas espécie de alimento que resulta da convergência entre metafísica e literatura. «Evocar o niilismo do presente (diz ainda M. Foessel) leva menos ao deplorar da falta de sentido do que ao pôr em dúvida a certeza de o encontrar na esquina da rua ou no resultado de uma equação». Afinal, vivemos perante o predomínio da tagarelice mediática e o risco do isolamento e do circuito fechado, que caracterizam a organização contemporânea do saber. Por isso, há o apelo aos valores, eclipsados sob o peso do relativismo e do individualismo. Paradoxalmente, o mercado dos valores é tanto mais fulgurante quanto é certo que faltam hierarquias e crenças sólidas. Confunde-se amiúde o cidadão com o «homo economicus», não se compreendendo a importância da prevalência da incerteza sobre a racionalidade cega. «A modernidade elaborou normas que, não emanando de uma razão instrumental, podem aspirar a uma universalidade não autoritária». Não podemos esquecer, no fundo, que a lógica democrática assenta no conflito, na regulação, no equilíbrio de poderes e influências, na incerteza e na imperfeição. Com efeito, para além dos valores e normas, há as convicções, com as suas próprias fragilidades, mas com influência positiva na determinação e na vontade para afrontar o futuro. Nietzsche tem de ser invocado neste ponto. A resposta ao «nada» não se encontra no excesso de certeza, mas na atitude de quantos preferem a dúvida ao nada. Aqui está o cerne da questão, que nos leva a interrogar e a pôr em causa, por exemplo, o gnosticismo como identificação do mundo com o mal, que hoje renasce até quando os produtos da tecnologia moderna tornam o homem estranho ao mundo que habita, do mesmo modo que afirmamos a condição moderna como o pluralismo de sentido e de valores. Perante o ceticismo, por outro lado, torna-se necessário, não responder com novos dogmas, mas voltar a investir no que Paul Ricoeur insistiu, muito justamente, um elo estável entre a crítica e a convicção. Ora, como disse Camus: «cada geração, sem dúvida, crê-se votada a refazer o mundo. A minha sabe, porém, que não o refará. Mas a sua tarefa é porventura maior. Ela consiste em impedir que o mundo se desfaça».

A CRENÇA NESTE MUNDO
Assim, a crença neste mundo basear-se-á na necessidade de fazer surgir, sob a diversidade dos acontecimentos, uma questão escondida, que permita ver no desconhecido mais do que uma ameaça. Jean-Luc Nancy afirma, aliás, que é tentado a substituir os valores pelo sentido, uma vez que este sentido encontra valor no que vale para quem é comunicado. Mas, se o niilismo é a desvalorização dos valores superiores, essa desvalorização não suprime o pensamento que subjaz à palavra valor. Não estamos, contudo, a falar de valor em sentido económico – até porque o que tem mais valor é o que não tem preço. Referimo-nos, sim, à dignidade (Würde), que Kant considerava como fundamento do imperativo categórico, e que se relacionava etimologicamente com valor (Wert). E é neste ponto que devemos insistir em que a resposta ao «nada» não se encontra no excesso de certeza, mas na atitude dos preferem a dúvida ao nada.

Guilherme d’Oliveira Martins

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