A Vida dos Livros

De 12 a 18 de janeiro de 2015.

1915-2015. O ano que agora entra é marcado pelo centenário da revista «Orpheu». Almada Negreiros esteve ligado intimamente à fundação do Centro Nacional de Cultura, que é também depositário do espólio de José Pacheco. A data é para nós fundamental. Invocamo-la como primeiro sinal de um conjunto de iniciativas que marcará também os 70 anos do CNC!

UM CENTENÁRIO SIGNIFICATIVO
Cem anos! Em 2015 celebraremos o primeiro centenário da revista «Orpheu», oportunidade para uma reflexão sobre a cultura portuguesa contemporânea marcada, mais ou menos intensamente, pela modernidade. Sabemos que entre o primeiro número e o segundo da célebre revista não houve apenas alteração de diretores – de Luiz de Montalvor e Ronald de Carvalho para Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. Houve uma nítida afirmação de um sentido estético futurista, em abril de 1915, no número 2, representado ostensivamente por Almada Negreiros na identificação icónica de Fernando Pessoa. Nesse número segundo está publicada a «Ode Marítima» de Álvaro de Campos que mereceu de Sá-Carneiro a apreciação de obra-prima do futurismo, bem como os quatro extratextos de Santa-Rita Pintor, que com incompreendida originalidade assumem um conceptualismo baseado nas sensibilidades mecânica, litográfica e radiográfica, bem como um designado intersecionismo plástico, muito próprios e longe das influências italianas. São, aliás, significativos os termos usados por Fernando Pessoa, dirigindo-se em carta a Camilo Pessanha: «É uma revista, da qual saíram já dois números; é a única revista literária a valer que tem aparecido em Portugal, desde a Revista de Portugal, que foi dirigida por Eça de Queirós. A nossa revista acolhe tudo quanto representa a arte avançada; assim é que temos publicado poemas e prosas que vão do ultrassimbolismo ao futurismo. Falar do nível que ela tem mantido será talvez inábil, e possivelmente desgracioso. Mas o facto é que ela tem sabido irritar e enfurecer, o que, como V. Ex.ª muito bem sabe, a mera banalidade nunca consegue que aconteça. Os dois números não só se têm vendido, como se esgotaram, o primeiro deles no espaço inacreditável de três semanas. Isto alguma coisa prova – atentas as condições artisticamente negativas do nosso meio – a favor do interesse que conseguimos despertar».
Não por acaso Fernando Pessoa compara «Orpheu» com a revista de Eça, estando no entanto a pensar, muito mais do que nessa iniciativa, no grito da geração do Bom Senso e do Bom Gosto (há 150 anos) que causou escândalo em Coimbra e que visou a escola do elogio mútuo e a decadência do gosto romântico – sob o magistério de Antero de Quental. Afinal, qualquer mudança exige sempre pôr em causa a lógica da continuidade. Hoje sorrimos quando lemos a apreciação de personalidades até aí respeitadas sobre a suposta loucura desses jovens que lançaram «Orpheu», que mais não era do que expressão do inconformismo e de uma renovação estética e artística. Se olharmos com atenção a história da cultura portuguesa nos últimos duzentos anos, verificamos haver uma continuidade genealógica entre os primeiros grandes mestres românticos, Garrett e Herculano e o realismo dos protagonistas da geração das Conferências Democráticas do Casino (com destaque para Antero, Eça e Oliveira Martins) com os animadores do Primeiro Modernismo, devendo acrescentar-se outros inconformistas que se recusaram a seguir os cânones de modas ou escolas (como Cesário, Pessanha ou Pascoaes). Essa linha merece ser realçada.

SUPERAR RESISTÊNCIAS E SIMPLIFICAÇÕES
Como afirmava Pessoa, a revista tinha «sabido irritar e enfurecer, o que (…) a mera banalidade nunca consegue que aconteça». Ora, José-Augusto França e Eduardo Lourenço compreenderam, premonitoriamente, a importância de «Orpheu» e dos seus artífices – superando desconfianças e preconceitos, resistências e simplificações. Para além dessas considerações, o que os dois autores conseguiram foi que se começasse a ler criticamente e com olhos de ver a obra heterogénea e muito rica dessa geração. E assim prenunciaram e anteciparam a voga que viria a surgir, algo tardiamente, é certo, reconhecendo a importância fundamental desse grupo. «A nossa geração foi a primeira (diz Eduardo Lourenço) que de uma forma sistemática descobriu e explorou este género de leitura que só Oliveira Martins, num outro contexto, praticara, o que supõe um vaivém assumido e, em última análise, sem termo, entre razão e mito». De facto, J.-A. França recorre às narrativas para explicar outras narrativas, sob um «fundo omnipresente de configuração mítico-tautogórica». E assim o mito em lugar de constituir uma sombra que não permite ver a realidade torna-se um instrumento crítico que permite uma leitura clara da história e um sentido emancipador. E se «Almada não “raciocina” como Pessoa», apreende-se «na autossuficiência, iconiza-se e vê aquilo que vê, claramente visto, como ideia-mito, separado de tudo e, nessa separação, unido a tudo». Estas considerações encontram-se na edição do Centro Nacional de Cultura da revista «Contemporânea», de José Pacheco, cujo número-espécimen é precisamente de 1915. Pode dizer-se que «a leitura mitológica do modernismo português (para J.-A. França) – com o seu epicentro nos casos de Almada e Amadeo (lido por Almada) – exerceu, e exerce, na cultura portuguesa contemporânea uma influência considerável e sob certos aspetos hegemónica». E eis-nos ante um paradoxo, que resulta, afinal, dessa capacidade de usar os mitos como aguilhão crítico e não elemento acomodatício: «o nosso modernismo assinala (…), de algum modo, a espetacular ausência de Modernidade na nossa Cultura do século XX». E é a partir dessa leitura dos mitos que ganha um interesse especial a geração de «Orpheu», considerada reveladora de uma necessidade de mudança e de inconformismo.

UM GENIAL CRIADOR DE MITOS

Nesse sentido, o centenário que ora se assinalará deve ser encarado como memória de um tempo transformador e de rutura. Daí a necessidade de se compreender a incerteza e a imprevisão, quando se trata de criatividade e inovação. Não se celebra, pois, uma realidade imóvel e situada no passado, mas deve procurar-se entender o movimento – e nele a relação, criadora de coerências e paradoxos, entre razão e mito. «Desejo ser um criador de mitos, que é o mistério mais alto que pode obrar alguém na humanidade» – disse o próprio Pessoa. Ao partir da leitura crítica dos mitos para a concretização da vontade humana, Eduardo Lourenço considera-os preciosos reveladores das origens e da iniciação da realidade humana, a fim de culminarem na formação de uma vontade consciente, ilustrada e aberta, capaz de ser emancipadora dos constrangimentos e limites: transformar o amador na coisa amada, fazer aparecer a unidade perfeita onde a dualidade existia, entre transcendência e imanência. Daí a importância da revisão crítica desse momento português de heterogeneidade e de início de caminhos novos – mesmo que há muito eles fossem tentados ou mesmo trilhados… Articulemos, afinal, os momentos de mudança e projetemo-los na recusa do que seja fatal como o destino…

Guilherme d’Oliveira Martins

Subscreva a nossa newsletter