A Vida dos Livros

De 11 a 17 de dezembro de 2017.

O ano 2018 está à porta e o Comissário Europeu para a Educação e Cultura, Tibor Navracsics, ao abrir oficialmente o Ano Europeu do Património Cultural, recordou no dia 6, no decorrer do Fórum Europeu da Cultura, que não estamos apenas a falar «de literatura, arte, objetos, mas também de competências aprendidas, de histórias contadas, de alimentos que consumimos e de filmes que vemos».

QUE PATRIMÓNIO CULTURAL?

O tema do património cultural é complexo. Nada pior do que tratá-lo de ânimo-leve, ao sabor dos lugares comuns. Tratamos da relação da contemporaneidade com a História. De facto, os lugares de memória correspondem sempre a uma encruzilhada de referências e de tempos. Qualquer simplificação revela-se perversa. Se os anglo-saxónicos preferem usar a palavra “heritage”, no sentido do que recebemos, nós recorremos a uma expressão de origem latina que liga à noção de serviço (“múnus”) à de relação com os nossos antepassados (“patres”). Temos, assim, uma ideia dinâmica, que aponta no sentido da ação e da responsabilidade. Eis por que razão as políticas públicas de cultura, e em bom rigor de educação, têm de partir da preservação e do conhecimento da memória, para melhor podermos entender a capacidade criadora e renovadora das novas gerações. O ensino da História, o entendimento aberto das Humanidades, a cultura exigente que se demarca da mediocridade e da irrelevância, o diálogo competente entre saberes e culturas têm de merecer cuidado e atenção. Há exatamente cem anos, dia por dia, Almada Negreiros assinou o “Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX”. Aí, muito dominado pela conjuntura que o rodeava e pela presença da guerra, insistia em que era preciso criar a pátria portuguesa do século XX – importando a demarcação relativamente a um entendimento indiferente, passadista, fraco, decadente, redutor e fechado. Em lugar da inércia e da burocracia, urgia despertar energias. Haveria que assumir a coragem de considerar as qualidades e os defeitos próprios – para que a qualidade pudesse ser referência. E que foi buscar o artista para fundamentar a sua pesquisa sobre o futuro? O Ecce Homo quatrocentista do Museu das Janelas Verdes. Ou seja, mais importante do que a invocação de referências passadas ou mortas, haveria que que encontrar as qualidades dos melhores, projetando-as nos vivos. Em lugar de ler a História como um tempo ultrapassado, haveria que estudá-la e compreendê-la como movimento. Em vez da falta de cuidado relativamente ao que nos foi legado pelo passado, importaria cultivar a capacidade renovadora, suscetível de acrescentar valor ao recebido. Daí o regresso aos pintores e artistas de quatrocentos – num entendimento vital de património que se renova permanentemente. Almada invoca, por isso, “estes meus grandes olhos de europeu, cheios de todos os antecedentes; com o passado, o presente e o futuro numa única linha de cor, escrita aqui na palma da minha mão esquerda” (Conferência nº 1, 1920).

RECOLHA DE SENSAÇÕES

Quando Stendhal visitou há duzentos anos, Roma, Nápoles e Florença, mais do que as apreciações eruditas sobre o que via, procurou uma “recolha de sensações”. E deparamo-nos com uma relação rica e fecunda entre pedras mortas e pedras vivas, para usar a expressão consagrada de Rabelais. E essa relação permite compreendermos o património cultural como uma construção permanente, assente no diálogo entre o passado e o futuro, mediado pelo presente. Veja-se o que diz o autor da Cartuxa de Parma sobre exemplo do “Duomo” de Milão – «nunca a arquitetura me deu tais sensações. O mármore branco recortado em filigranas não tem certamente a magnificência nem a solidez de S. Paulo de Londres. Direi às pessoas nascidas com inclinação para as belas-artes: “Esta arquitetura brilhante é o gótico sem a ideia de morte: é a alegria do coração melancólico; e, como esta arquitetura despojada de razão parece construída pelo capricho, está de acordo com as loucas ilusões do amor. Trocai por pedra cinzenta o mármore brilhante de brancura, e todas as ideias de morte reaparecem…”». Stendhal compreendeu bem que o património cultural só teria sentido se se relacionasse com as pessoas e com as sensações que nelas produz. Por isso, não podemos ser indiferentes, temos de cultivar esse afeto especial – que nos obriga a proteger essa memória material, em nome da própria vida. E o conhecimento histórico, a atenção às tradições obrigam-nos ao culto e à atenção, nunca é de mais insistir. Por isso, não há política cultural digna desse nome sem valorizar o que recebemos das gerações que nos antecederam – seja património material ou imaterial, monumentos ou hábitos e costumes. Mas não se trata de uma reprodução passiva ou de uma imitação empobrecedora. “Em Paris, temos todos os prazeres; em Itália só há um – em primeiro lugar o amor e ainda as Belas-Artes que são outro modo de falar do amor”. E esse amor, que decorre do prazer da viagem, leva à arte da escrita, como forma de transmitir uma paixão, impossível de esquecer. Lembremo-nos do nosso Antero, severo crítico das escolas da repetição e do elogio mútuo. Para viver com ideias é indispensável não deixar ao abandono o melhor que nos foi legado – a língua, a literatura, as Belas-Artes, as paisagens, a relação com a natureza, numa palavra, a memória viva e os seus roteiros. Longe da lógica do “bricabraque” ou da mera musealização da cultura, do que se trata é de garantir que a salvaguarda do património permita a continuidade de uma memória exigente e culta, bem como um melhor conhecimento crítico. Haverá legado mais valioso do que aquele que nos foi deixado por Alexandre Herculano na reunião de arquivos, no levantamento de documentos e na organização das fontes e sua apresentação? Daí a ligação necessária às escolas e à pedagogia, enquanto elementos fundamentais de sensibilização e de defesa do património. Valorizar as Humanidades significa articular o ensino da História e das ciências auxiliares à investigação científica – bem como não deixar ao abandono tantos legados chegados até nós.

LEMBRAR A CONVENÇÃO DE FARO

Nos primeiros dias de dezembro, exatamente em Milão, foi lançado formalmente o Ano Europeu do Património Cultural – 2018, em conjugação com o Forum Cultural Europeu. Trata-se de assumir uma especial responsabilidade – a de pôr o património e a cultura no centro da vida europeia e democrática. Afinal, quando hoje se fala de sustentabilidade, temos de entender que não nos reportamos apenas à economia ou às finanças, ao meio ambiente ou à energia, referimo-nos a tudo isso, mas antes do mais ao desenvolvimento humano. Não por acaso a Convenção de Faro do Conselho da Europa (2005) fala-nos do valor do património cultural para a sociedade contemporânea, envolvendo direitos e deveres, bem como avaliação rigorosa de resultados alcançados, permitindo-nos compreender que o que tem mais valor é o que não tem preço e que a economia humana só progride verdadeiramente se souber garantir o equilíbrio entre a preservação da memória e o incentivo à inovação e à criatividade. Educamos pessoas e cidadãos livres e responsáveis e não robôs. Urge, por isso, compreender que a arte e a memória, que a ciência e a consciência se completam e que as sociedades amnésicas, que se fecham sobre si mesmas, recusando a abertura e a partilha, entram em inexorável decadência… 

Guilherme d’Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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