A Vida dos Livros

De 10 a 16 de novembro de 2014.

Que são «Pompas Fúnebres» de Eduardo Pitta (Ulisseia, 2014)? São um conjunto de reflexões sobre a vida, sobre a sociedade, sobre os dias que passam – sobre o que nos ocupa e deve preocupar.

UMA SOCIEDADE PERPLEXA
Eduardo Pitta é um escritor, um poeta, um ensaísta com provas dadas. A leitura da sua obra é necessária. Entre 1974 e 2013 publicou 10 livros de poesia, uma trilogia de contos, cinco volumes de ensaios e crítica, dois diários de viagem e o volume de memórias, «Um Rapaz a Arder» (Quetzal, 2013), tendo editado a poesia de António Botto e sendo autor do blogue «Da Literatura». Nesta reunião de textos sente-se a pulsão de uma sociedade perplexa perante os acontecimentos de uma estranha crise financeira, que repetindo erros antigos descobre novas formas de iludir, de especular e de fugir às questões fundamentais. «Faz agora três anos que os portugueses descobriram, entre a incredulidade e o estupor, que andaram 30 anos a viver acima das suas possibilidades. Se fosse viva, a minha bisavó Ema diria que tudo começou no tempo do António Maria…». É, no entanto, de hoje que se fala, mas o António Maria é o homem dos melhoramentos, que Rafael Bordalo Pinheiro eternizou e que procurou pôr o país a andar ao ritmo da máquina a vapor… E Eduardo Pitta cita Mark Blyth em «Austeridade – Uma Ideia Perigosa» (p. 204), referindo a «falta de lógica dos programas de austeridade impostos à Grécia, Irlanda, Portugal, Espanha e Itália, nenhum deles assente em estudos económicos». E vem à baila, como é óbvio, a pergunta sacramental: «Porquê, então, manter a ficção de que a crise do mercado obrigacionista é uma crise de Governos perdulários?». Ninguém responde satisfatoriamente. É preciso, afinal, desarrumar muitas ideias feitas… A ideia perigosa onde está? Na ilusão de que um mirífico mercado tudo resolve, mesmo deixando de lado a justiça e a coesão. Esquece-se que a Espanha e a Irlanda tinham superávide orçamental antes da crise e que muita gente, por outro lado, andava a pregar, a fim de vender os seus produtos, que poderíamos viver a crédito. O resultado está à vista e não tem resposta simples. Austeridade não se confunde com a necessária sobriedade. Tudo está em encontrar o equilíbrio entre a disciplina dos meios e a sua justa distribuição. E o nosso autor recorda o tema recorrente da «exaustão do tesouro» (p. 131), a propósito da suspensão em 1799 das obras públicas por D. Maria I… Mas havia a sociedade civil a teimar «meter o pezinho»: «os Quintelas, Caldas, Bandeira, Cruz Sobral e outros detentores de monopólios rivalizaram entre si no empreendorismo». O sentido de bem comum é o que se exige. E, com sentido de futuro, eis que o autor faz «figas para que um herdeiro de José-Augusto França faça a “História Física e Moral de Lisboa” do século XXI. Só assim perceberemos as linhas de continuidade do tempo que nos coube». O que tantas vezes falta é essa capacidade crítica de não nos deixarmos arrastar pelas considerações do curtíssimo prazo, esquecendo o que deve ser feito na continuação da sociedade e do tempo.

A IMPORTÂNCIA DA MEMÓRIA

«Afinal, o que vale uma crise monetária ao pé de 60 milhões de mortos?» (p. 177). A pergunta é fundamental e apela à memória de um século. A crise financeira e os seus efeitos atuais obrigam-nos a pensar, por exemplo nos estranhos enredos que levaram às guerras. Por isso mesmo as considerações de uma suposta ciência económica têm de ser cuidadosamente vistas, uma vez que as simplificações têm normalmente resultados dramáticos. A dignidade não tem preço, disse-nos o velho Kant. Eduardo Pitta fala-nos disso: da vida, das mentalidades, das tentações de ser encaminhados para o precipício por cegos como na parábola pintada por Bruegel, o velho. Leia-se «Nostalgia da Felicidade» (p. 143) sobre Tony Judt. É verdade que o sucesso do escritor deveu-se à informação inédita com que contou (os arquivos austríacos e da Europa de Leste), o que não tinha acontecido com Hobsbawm, Lichtheim e Taylor, mas, o principal é que interpretou o passado de forma «declaradamente pessoal». Mais do que sobre a Europa depois de 1945, Pitta fala-nos, porém, de «O Chalet da Memória», ou seja, da dimensão literária do historiador: «É comovente ver como este homem, que com tanta argúcia escreveu sobre a História da Europa e um punhado de autores que marcou o perfil do seu e do nosso tempo (Camus, Sartre, Arendt, said, Althusser, Levi, Foucault, outros), se deixou enredar com ironia e sageza no labirinto das mnemónicas: “Para um miúdo, o racionamento fazia parte da ordem natural das coisas”. Isto não é sobre a guerra, é sobre Londres nos anos 1950». No entanto, a indiferença e a amnésia têm pesado demasiado…
E A LITERATURA?
Eduardo Pitta fala de literatura e de vida. Por isso é bom lê-lo e perceber a pertinência do seu sentido crítico, desgostando-se de haver a prevalência do correto, do «by the book» e da ausência de leitura. Cita-se mais do que se lê. E eis que o autor nos diz o que anda cada vez mais esquecido. «As pessoas que gostam de ler querem informação séria, não afunilada, sobre o que vai sendo publicado: novos títulos e autores, reedições importantes, traduções que enriquecem a língua de chegada, etc. É impossível ter uma ideia formada sobre centenas de autores que entopem o mercado. Exceto os diletantes de rede social que dissertam sobre Sebald e Pychon sem nunca os terem lido. (Os mais afoitos tratam por tu Wittgenstein e Homero). Mas esses não me interessam. Falo de pessoas comuns, a maioria silenciosa que lê jornais e mantém abertas as livrarias. Essas pessoas sabem que a produção literária não se esgota naquela dúzia de autores alvo de atenção por parte das 50 pessoas que frequentam os almoços da rentrée. E menos ainda nos dois ou três muito lá de casa dos referidos comensais» (p. 200). E se o escritor apela à leitura direta e sem estranhos intermediários, fá-lo em contracorrente e devemos ter isso em especial consideração. «Pompas fúnebres», título que vem de um conto, contém diversos e atualíssimos avisos à navegação, mas sobretudo um especial e refinado culto da memória, de que são alguns exemplos: a lembrança de Moçambique («Era 1972 e havia guerra do outro lado da ponte», em «Regresso a Macondo», p. 71), a recordação do Porto («é fácil identificar na gente do Porto a superior forma de obsequiar que a distingue», p. 24), a referência ao «ano tramado» de 1978 («À época ninguém sabia que 1978 ia ser um ano tramado. Logo a 20 de fevereiro, morreu Nemésio. A 4 de junho, foi a vez de Sena. E a 8 de agosto, a de Ruy Belo. Uma razia»…, p. 27), sem esquecer a invocação de Alberto Lacerda («O exílio é isto e nada mais / Na sua forma mais perfeita: / Hoje na terra de meus pais / Somente a luz não é suspeita», p. 48), de Malangatana («uma lenda da minha geração», p. 115) ou de Guilherme de Melo (p. 123)… Nada melhor do que ler. Ler mesmo! «O grande problema, nestas coisas, não é a legitimação em si mesma. O busílis reside na perpetuação dos equívocos que alimentam o Who’s Who da nossa vida literária»…

Guilherme d’Oliveira Martins

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