A Vida dos Livros

Os 130 anos de “Os Maias”

Os 130 anos de Os Maias merecem ser lembrados.
A exposição que a Fundação Gulbenkian organiza, com o inestimável apoio da Fundação Eça de Queiroz, pretende centrar-se na importância de um livro referencial e na promoção de uma reflexão, que leve à leitura da obra, que permita um conhecimento da mesma e que promova ainda o gosto de ler, um melhor domínio da língua e o contacto com a literatura e a História viva.

REFERÊNCIA BEM PRESENTE
Não se trata de um exercício retrospetivo ou passadista, mas da consideração de uma preocupação bem presente, orientada para os cidadãos de hoje. E se há bem pouco tempo se discutiu se essa obra deveria estar no elenco dos programas escolares, o certo é que o bom senso prevaleceu, com a preocupação com os hábitos de leitura e o culto das humanidades, que não podem desaparecer da ordem do dia. A iniciativa nasceu de uma conversa despretensiosa com o meu amigo Afonso Eça de Queiroz Cabral. Havia que pôr momentaneamente Tormes, Santa Cruz do Douro, em Lisboa, para que esse roteiro extraordinário pudesse tornar-se mais conhecido – e para que a ideia dos percursos literários e das viagens com livros pudesse enraizar-se nos nossos hábitos culturais. No Ano Europeu do Património Cultural, nada melhor do que lembrar um romance como este, que constitui uma verdadeira panóplia sobre quem fomos e sobre o que não devemos esquecer criticamente sobre as nossas qualidades e defeitos, virtudes e limitações. Aí estão muitos ingredientes que nos conduzem à ideia complexa de património cultural, nas suas diversas aceções. O longo tempo de feitura e de revisão que o autor dedicou à obra permite que haja um conjunto complexo e heterogéneo de elementos, que nos levam a compreender o património material e imaterial, a natureza e a paisagem, e a capacidade criadora ditada pela contemporaneidade. Alguém disse “está lá tudo”… Não sei se está, mas a verdade é que há muito do que permite compreender criticamente a nossa realidade. Fizemos um longo percurso, o apuramento do sentido crítico que Eça e a sua geração nos ensinaram teve os seus resultados, mas há muito para fazer. Daí a importância de podermos lidar com a oficina do escritor, percebendo que à mediocridade devemos saber contrapor o não deixar ao abandono o que recebemos e a aprendizagem exigente da informação que tem de se tornar conhecimento e do conhecimento que deve ser sabedoria…

TUDO O QUE TENHO NO SACO
Na célebre carta a Ramalho Ortigão de 20 de fevereiro de 1881, a propósito de uma hipótese confusa de publicação em folhetins de Os Maias no “Diário de Portugal”, de Lourenço Malheiro, Eça fica na esperança de poder obter uma boa retribuição monetária pelo romance – “e como via nessa proposta uma pequena fortuna (o Malheiro afiançava-mo) decidi logo fazer não só um romance, mas um romance em que pusesse tudo o que tenho no saco. A ocasião confesse era sublime para jogar uma enorme cartada”… O episódio é triste de desencontros e incompetências, atrasos tipográficos e outras incapacidades. Mas só em 1888 essa obra, considerada quase pronta sete anos antes, viu finalmente a luz do dia. O que importa dizer é que o romancista fez indiscutivelmente uma grande aposta – e é esse o resultado de que todos somos beneficiários, ao ler uma ampla representação da sociedade do momento. Em 12 de junho de 1888, em carta a Oliveira Martins, dirá: “Os Maias saíram uma coisa extensa e sobrecarregada, em dois grossos volumes! Mas há episódios bastante toleráveis. Folheia-os, porque os dois tomos são volumosos de mais para ler. Recomendo-te as cem primeiras páginas; certa ida a Sintra; as corridas; o desafio; a cena do jornal A Tarde; e sobretudo o sarau literário. Basta ler isso e já não é pouco. Indico-te, para não andares a procurar através daquele imenso maço de prosa”. Os Maias são um retrato do Portugal citadino do final do século XIX. Há um rico percurso que abrange desde um tempo de confronto entre a tradição e os ventos novos, representado pelo avô Afonso da Maia, que nos liga à sociedade antiga, até aos efeitos da acalmação e do progresso concretizado pela Regeneração. Dir-se-á, porém, que confluem a imitação das sociedades avançadas da Europa e a ausência de meios suficientes para assegurar que os melhoramentos de Fontes Pereira de Melo tornassem o país próspero e superasse o atraso. A sombra do défice e da dívida pública abatem-se sobre o país – e os ingredientes do romance trazem-nos, ao lado de uma trágica trama amorosa entre dois irmãos, que se desconhecem, o confronto entre o tédio vivido por Carlos da Maia e o pensamento de João da Ega, ditado pelas influências de um fim de século pessimista e contraditório. Há mudanças profundas que se reclamam, há intenções. Mas o pano de fundo revela futilidade, descrença, ilusão e mediocridade.

UM ROMANCE FIEL AO AMBIENTE VIVIDO
Indiscutivelmente, Os Maias é um romance fiel ao ambiente que se vivia quando foi publicado e escrito, o que faz crer a muitos que continuamos a persistir nessa sociedade retratada há tantos anos, numa obra longamente escrita e pensada… As diferenças na sociedade são profundas, mas há reminiscências que perduram. A escrita é cortante, clara, incisiva e tem de ser reconhecida na sua imensa riqueza. Os Maias assumem um lugar central no nosso panorama literário, pelo caráter, pela diversidade das personagens, pela força da escrita e pelo sentido crítico. Representam uma das marcas deixadas pela Geração de 1870 – graças a uma voz severa, mas não a um negativismo sem horizonte. Devemos lembrar o que Eduardo Lourenço disse em O Labirinto da Saudade: “Não é suscetível de discussão o amor (e o fervor) com que a Geração de 70 tentou desentranhar do Portugal quotidiano, mesquinho e dececionante, um outro, sob ele soterrado, à espera de irromper à luz do sol”. E sobre a crítica de Fialho de Almeida, o próprio Eça dirá em sua defesa: “condenar um escritor, como caluniador e maldizente, porque ele revela os ridículos do seu país – é declarar maldizente toda a literatura de todos os tempos, que toda ela tem tido por fim fazer a crítica dos costumes, pelo drama, a poesia, o romance e até o sermão!” (a Mariano Pina, 27.7.88). Talvez A Ilustre Casa de Ramires seja mais problematizante, mas também mais enigmático. Estamos, assim, diante de uma panóplia inesquecível, que deve ser recordada por quem queira conhecer a literatura portuguesa. Lembremos Maria Eduarda, fantasma marcante no romance, os Gouvarinhos, Cohen, Dâmaso, Alencar, Palma Cavalão… A diversidade esconde, no entanto, uma uniformidade desgostante. E a imitação é a marca. Agora, podemos contar com a presença de peças originais que vieram especialmente de Tormes, onde costumam estar expostas (como a secretária do escritor e a célebre cabaia) e que, por certo, se tornarão motivo para que o roteiro queirosiano se torne mais conhecido. É de literatura como realidade viva e atual que cuidamos, eis a razão desta escolha – de uma obra-prima da língua portuguesa de sempre.

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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