A Vida dos Livros

“Contos Populares Portugueses” de Adolfo Coelho

“Contos Populares Portugueses” de Adolfo Coelho (Paulo Plantier, 1879) constitui uma tentativa séria de preencher uma lacuna na cultura portuguesa e que tem a ver com a ausência de uma recolha sistemática, ao longo dos séculos, de exemplos coevos da cultura popular no imaginário literário.

CONTOS DA CULTURA POPULAR

Como diz Adolfo Coelho (1847-1919) no prefácio da obra: «Os contos que publicamos não têm todos igual valor, mas oferecem todos mais ou menos interesse sob o ponto de vista tradicional. Em regra, pode considerar-se a tradição dos contos entre nós como assaz obliterada; falta-lhes vida, poesia, muitas vezes referência; muitas feições significativas em versões doutros países tornaram-se aqui ininteligíveis e só pela comparação se explicam. A sua forma em geral é seca, monótona, enumerativa. Alguns, porém, apresentam-se ainda numa forma excelente, menos deturpados por elementos modernos; noutros, como em todos os países sucede, há o resultado de estranhas combinações de elementos de contos diversos». Insiste o pedagogo que os contos populares «não são ridículas invenções, boas só para divertir gente rude, que não tem cousa melhor para pasto do seu espírito e da sua ociosidade» – e continua: «muita gente, séria e grave na própria opinião, pasmará de que haja quem gaste o seu tempo com tais coisas; mas algumas pessoas haverá também que queiram aprender e para essas escrevemos as observações que seguem, desnecessário aos que estão ao corrente da ciência». Mas reconhece que «a novelística culta de fundo tradicional é um dos ramos mais pobres da nossa literatura; por essa razão a história dos contos populares entre nós não se pode estudar com a clareza que haveria se tivéssemos numerosos documentos do género do que trasladamos. O Orto do Esposo e os Contos de proveito e exemplo de Gonçalo Fernandes Trancoso assumem, por isso, uma importância excecional». A mais antiga edição desses contos é de 1575, segundo Teófilo Braga, mostrando que foram escritos por ocasião da peste de 1569. E Trancoso terá usado a tradição popular como fonte». Entre os contos populares reunidos por Adolfo Coelho, podemos referir: A história da Carochinha; A Formiga e a Neve; O Rabo do Gato; A Torre da Babilónia; Mais vale quem Deus ajuda do que quem muito madruga; História do Grão-de-Milho; O Príncipe Sapo; O homem que busca estremecer, O Príncipe com Orelhas de Burro; Os Três Estudantes e o Soldado; a Moura Encantada…

CIDADÃO E PEDAGOGO

Francisco Adolfo Coelho foi pedagogo, filólogo, etnólogo, linguista e escritor. Exerceu funções de professor do Curso Superior de Letras, onde ensinou Filologia Românica Comparada e Filologia Portuguesa, foi diretor da Escola Primária Superior e lecionou na Escola do Magistério Primário de Lisboa, onde organizou o Museu Pedagógico. Nas Conferências do Casino, em 1871, tratou do tema “A Questão do Ensino”, onde defendeu a separação da Igreja do Estado e a promoção da liberdade de pensamento, como essenciais para o progresso do País pela Instrução Pública. O novo Portugal nasceria, para Adolfo Coelho, da incorporação da cultura popular num projeto da nação no qual a Educação fosse central. As tradições do povo, o seu saber e a pedagogia popular seriam considerados para alicerçar a modernização da sociedade portuguesa e o espírito da sociedade nova centrados na sua cultura. Figura considerada e prestigiada teve nas duas primeiras décadas do século XX um papel importante, designadamente na institucionalização da República, em especial no tocante à organização do ensino secundário superior. Assim, acentuou a necessidade de só se apresentar aos educandos aquilo que estivessem preparados para entender e de lhes dar liberdade de escolha entre algumas disciplinas de opção nas classes superiores do ensino secundário.

UM CONTO ATUAL

Como exemplo de pedagogia pela recordação da cultura popular, lembramo-nos do célebre conto tradicional das culturas europeias, que muitos de nós ouvimos contado pelas nossas avós. “O Homem que busca estremecer”, incluído nos “Contos Populares Portugueses”, que constitui uma versão nossa do velho conto dos irmãos Grimm do jovem que partiu em busca do medo. “Era um homem rico e tinha um filho que nunca estremeceu com nada. Dava-lhe o signo dele de ir passar muitas terras e nunca seria timorato, nunca teria medo a cousa nenhuma”. Pediu então o filho a seu pai que lhe desse o seu quinhão para poder partir em busca do medo que lhe faltava. E assim aconteceu, enfrentando mil situações aterradoras. Com demónios estoirando dentro de casas, sempre sem o mínimo calafrio. A tradição germânica relatada pelos Grimm é semelhante. “Um pai tinha dois filhos, o mais velho deles era sábio e sensato, e sabia fazer tudo, mas o mais novo era tolo, e não conseguia aprender nem entender o que quer que fosse”. Mas enquanto o mais velho se negava a ir para locais sombrios e assustadores, nada atemorizava o mais novo. Por mais que tentassem, nada havia que lhe metesse medo – até que um pobre sacristão ficou em muito mau estado quando quis assustá-lo como se fora um fantasma, pois o jovem não se deixou perturbar pela suposta ameaça. Então partiu pelo mundo em demanda do medo. Com cinquenta moedas no alforge, enfrentou perigos, até com risco de vida, mas sempre sem o menor temor. José Gomes Ferreira também tratou do tema nas “Aventuras de João sem Medo” (inicialmente publicadas nas páginas da revista “O Senhor Doutor”, em 1933). Aí, cansado de viver numa terra de choros e queixas, a aldeia de Chora-Que-Logo-Bebes, João decidiu saltar o muro que separava o lugarejo do mundo, em busca de enigmas da infância e de entes fantásticos – bichas de sete cabeças, gigantes de cinco-braços, fadas, bruxas, animais que falavam e ainda o mítico Príncipe de Orelhas de Burro… No conto de Adolfo Coelho o medo seria encontrado num cabaz de pombas que «lhe esvoaram para a cara», causando-lhe estremecimento; no relato de Grimm, o jovem tornar-se-ia rei e tudo terminou num epílogo algo ingénuo e pouco épico, com um balde de água fria, lançado por uma aia da rainha, cheio de gobiões, peixinhos moles e peganhentos, com barbatanas perturbadoras. As metáforas merecem ser lembradas. Os tempos muito incertos e cheios de ameaças que vivemos não permitem que facilitemos as coisas. Ainda estamos longe de nos libertarmos destas condições trágicas. Precisamos de encontrar todos os meios possíveis para inverter a tendência e para podermos salvar vidas. A liberdade individual e a proximidade uns dos outros terão de ser recuperadas com solidariedade e esperança. Sendo atuais, urge compreender o medo e a verdadeira audácia, para não nos desprevenirmos nesta pandemia que nos enlouquece…

Guilherme d’Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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