Destaque

“Na Loja de Antiguidades” – Conto de Natal

Da autoria de Guilherme d’Oliveira Martins, é o Conto de Natal que a equipa do CNC partilha com todos, com os votos de um FELIZ NATAL e próspero ANO NOVO

NA LOJA DE ANTIGUIDADES

Era dezembro e chovia. Lampreia estava reunido com o seu guarda-livros a fechar as contas do ano. A pneumónica ainda se fazia sentir nos resultados do comércio, apesar de estarem a desvanecer-se os efeitos da terrível maleita. O auge da doença já tinha passado, e anunciava-se o ano de 1920 como um novo tempo. A loja de antiguidades simbolizava os efeitos da roda da fortuna. Cada objeto que ali se encontrava tinha uma história para contar – havia cadeiras elegantes que tinham servido em palácios e móveis toscos que provinham de casas vulgares, havia mesas de jogo que tinham gerado fortunas ou que tinham feito desgraças, havia cofres que tinham estado cheios de preciosidades e outros que ficaram vazios, havia arcas que serviam para manter as famílias durante o inverno, havia requintados contadores cobertos de belos embutidos de madrepérola, cujas gavetas haviam escondido mil segredos… As recordações dos dias de felicidade coexistiam com as lembranças da decadência. E havia retratos a óleo de figuras imponentes ou fotografias à la minuta, ora com cenários austeros, ora cheios de decorações kitsch, de gente conhecida e anónima.

A loja de antiguidades tinha de tudo e os frequentadores eram de todos os tipos – os novos-ricos que procuravam retratos dos antepassados que nunca tiveram e as mobílias mais vistosas para fazer fogo-de-vistas; os que, às escondidas, procuravam recuperar alguma coisa que os antepassados tinham perdido; mas também os estudiosos, que genuinamente estavam apaixonados pelo passado e desejavam reviver o que as estampas dos melhores livros representavam; além dos que desejavam ocupar tão-só os espaços vazios lá de casa… O senhor Lampreia não podia, apesar de tudo, queixar-se do ano que tivera. Os resultados poderiam ter sido um pouco melhores, mas olhando o que acontecia com os concorrentes poderia dar-se por razoavelmente satisfeito.

Lá fora, o céu estava escuro e anunciava-se agravamento do estado do tempo. Quando o guarda-livros saiu, ao princípio da tarde, entrou um cliente, desconhecido, com gabardina de cor clara que deixava ver um fato escuro, chapéu mole, óculos de aro fino, pequeno bigode e um laço algo desajeitado. O visitante cumprimentou respeitosamente Lampreia, que lhe perguntou se procurava algo em concreto. “Nada em especial!” – respondeu o recém-chegado, que começou lentamente a percorrer a loja, detendo-se aqui ou acolá junto de um móvel ou de um bibelô, por entre a mercadoria acumulada. Intrigado, Lampreia abeirou-se de novo do visitante, que apercebendo-se da curiosidade do antiquário, entabulou uma conversa vaga sobre a arrumação das peças para venda. “Gosto muito da arrumação de tudo o que aqui tem – tenho uma preocupação especial com a ordenação das coisas… E as coisas antigas interessam-me, porque têm uma vida própria. Lembro-me de numa casa antiga que habitei, em Durban, um canapé igual ao que aqui tem”. E continuou a observação. Em dado passo, parou junto de uma antiga máquina de escrever “Royal”, e, por um instante, pareceu querer recordar algo, mas avançou sem dizer o que quer que fosse. Olhando um monte de livros infantis ilustrados, empilhados ordenadamente, não se conteve: “Temos todos duas vidas: / A verdadeira que sonhamos na infância, / E que continuamos sonhando, adulto num substrato de névoa; / A falsa, que é a que vivemos em convivência com outras / Que é a prática, a útil, / Aquela em que acabam por nos meter num caixão…”. Deu então mais um passo e folheou um dos livros de aventuras de cores desmaiadas. E continuou: “Grandes livros coloridos, para ver, mas não ler; / Grandes páginas de cores para recordar mais tarde” … E ali ficou alguns minutos revivendo, por certo, memórias antigas.

Antes de chegar à estante com encadernações diversas, parou junto dos mapas – “o esplendor dos mapas, caminho abstrato para a imaginação concreta, / Letras e riscos irregulares abrindo para a maravilha”. “Sabe? A cartografia entusiasma-me porque representa a diversidade do mundo. Coleciono mapas de todos os lugares e de todos os tempos, e os que mais me intrigam (e que desejo) são os que representam lugares imaginários, ou lugares vazios, antes de serem conhecidos ou povoados. São espaços em branco que podemos preencher com uma misteriosa história conjetural”.

A estranha figura, chegada junto dos livros, pegou numa encadernação antiga, que folheou com cuidado. E ficou algum tempo absorto na leitura, enquanto o antiquário foi até ao escritório para buscar algo de que precisava. Quando regressou, o visitante havia-se sentado numa cadeira de braços e continuava a folhear o livro com muito vagar. E rompeu o silêncio, dizendo: «Tem aqui uma pequena preciosidade – é o “Espelho dos Penitentes”, publicado em 1771, com poemas então inéditos de Frei Agostinho da Cruz, nascido em Ponte da Barca em 1540 e falecido em Setúbal em 1619… Tem aqui um verdadeiro tesouro. Encontrei uma possível prenda de Natal». A alegria do estranho visitante era contida, mas inequívoca. E pediu-me apenas para ouvir o que tinha descoberto naquele momento: “Que saudade de alma e que brandura, / Virgem Senhora minha, se vos deve / Em tempo que paris ó vento, à neve, / O Criador de toda a criatura. // No feno, que ficou na terra dura, / Pisado de animais, lançado esteve / O Menino Jesus, ah! que não teve / Casa, berço, lugar nem cobertura! // Não sou Rei, nem Pastor, que me pareça / Estrela que me guie, Anjo que me chame, / Por isso a vós não vou, de mim não parto. // E não tenho cordeiros que ofereça, / Ouro, incenso, mirra, o amor que inflama, / Com que vos visitar, Virgem, no parto!”. Depois de algum tempo, olhou pela porta e verificou que a chuva abrandara. Despediu-se serena e misteriosamente e desejou Boas Festas. Mas antes de sair, tirou lentamente do bolso da gabardina um envelope de cor parda com nada escrito no exterior e entregou ao antiquário – dizendo apenas: “Pode ser que um dia lhe sirva”, e desapareceu.

Incrédulo, Lampreia abriu o sobrescrito e leu para si, desconhecendo de todo quem seria aquele misterioso visitante. Outros descobririam por certo: «Nasce um Deus. Outros morrem. A verdade / Nem veio nem se foi: o Erro mudou. / Temos agora uma outra Eternidade, / E era sempre melhor o que passou. / Cega, a Ciência a inútil gleba lavra. / Louca, a Fé vive o sonho do seu culto. / Um novo Deus é só uma palavra. /Não procures nem creias: tudo é oculto» ….

Guilherme d’Oliveira Martins

Subscreva a nossa newsletter