A Vida dos Livros

“Assim Nasceu uma Língua – Sobre as Origens do Português”

Um livro de Fernando Venâncio, Guerra e Paz, 2019 – indispensável para apreendermos o modo como nasceu a língua portuguesa, a partir do ocidente da Península Ibérica, projetando-se em todos os continentes.

UMA LÍNGUA DE PASSAGEM POR PORTUGAL
Segundo Ivo de Castro: “a história da língua portuguesa pode ser resumida numa frase: falamos uma língua que nasceu fora do nosso território (de nós, portugueses) e cujo futuro será em larga medida decidido fora das nossas mãos. A língua portuguesa, numa visão temporal ampla, acha-se de passagem por Portugal”. Que significa a afirmação? Que foi na Galiza que tudo começou, desenvolvendo-se a língua a partir das influências que os portugueses imprimiram, multiplicaram e também sofreram. O futuro dependerá de um fenómeno lento e de águas profundas que corresponderá a uma mais ou menos profunda separação estrutural entre a língua de Portugal, a do Brasil e a dos países africanos… Não serão, porém, os portugueses europeus a definir esse caminho complexo e imprevisível. E o certo é que este livro, pleno de exemplos e de análises aprofundadas, mostra-nos como terá nascido a nossa língua, permitindo-nos compreender um caminho com diversas influências. Com razão, Ruy Belo disse que “sempre entre mim e ao que chamam coisas há de haver palavras” (País Possível, 1973). Partindo daqui, temos de entender, segundo Fernando Venâncio, que a vida de uma língua é algo que envolve diversos elementos e fatores, não se reduzindo a explicações mais ou menos simples sobre etimologia e antropologia. Uma língua é “uma construção imaginária em que se mesclam factos linguísticos com fatores históricos, políticos, sociais e culturais” (Carlos Faraco). Deste modo, a história material do idioma obriga a atender às múltiplas influências que se repercutem no léxico. No caso do português, temos as raízes galegas e depois a longa castelhanização (1450-1730) até às influências francesa e inglesa… A língua é uma realidade viva e surpreendente, geradora de soluções imprevistas. O autor lembra-nos, por exemplo, que a palavra “luar” é única no português e no galego, pois na generalidade das línguas descreve-se a “luz de luna” ou “clair de lune” – enquanto no português optamos por um conceito, sem paralelo noutros casos… De facto, as palavras não valem todas o mesmo, têm vida longa e não existiram sempre.

UM ESTUDO DIFÍCIL
“Em relação ao português clássico, quem o quiser estudar tem de se resignar a fazer de cabouqueiro, desenterrando penosamente os seus documentos, peneirando os dados, organizando uma taxinomia inexistente e, se ainda tiver coragem e tempo de vida, formulando hipóteses interpretativas que ficarão à espera de um debate crítico só possível se outros investigadores se transviarem pelos mesmos caminhos” (Ivo Castro). Ora, na vida da língua, pesa também no que Eduardo Lourenço tem designado como “maravilhosa imperfeição”. A identidade cultural é complexa e plural, como ensina José Mattoso, e, segundo Eduardo Lourenço, vive confrontada com dois complexos, um de inferioridade e outro de superioridade, que escondem a situação de um ser histórico em estado de intrínseca defensiva… No entanto, para compreender, não cuidamos apenas da evolução recente da língua, temos de ir mais atrás. Daí que o autor proponha “uma revisão da paisagem cronológica do nosso idioma”. Há, por isso, que saber recuar no tempo. Ora, “as nossas histórias da língua, depositárias amiúde duma ficção coletiva, imaginam a transição do latim para o nosso idioma consumada um ou dois séculos antes de iniciar-se a escrita, pelo ano 1200”. Tudo indica, porém, que, muito antes, por volta de 600, já a nossa língua tinha atingido “um estádio irreversível, desenvolvendo e sedimentando as principais características que a individualizam no conjunto das línguas da Península Ibérica”. O autor faz-nos a demonstração de que o nosso idioma e o espanhol tiveram géneses diferentes e separadas. Atente-se no banimento das consoantes, no desenvolvimento do ditongo ão e na redução das sibilantes. O português ou o espanhol jamais foi dialeto um do outro. O que há, como vimos, é um encontro do português e do espanhol por volta de 1400, num momento do “ofuscante esplendor” da cultura vizinha. Se há originalmente uma diferenciação da língua falada a ocidente, há depois um fenómeno de língua promíscua, que, partindo da citada queda das consoantes (voante, soante), reintroduz subtilmente aquilo que antes havia caído (volante, sonante)…Dir-se-ia que o “melting pot” étnico e cultural se torna linguístico… E deste modo houve, a partir do século XV, uma certa acomodação ao modelo espanhol, também com a adoção de diversos latinismos. “À hora exata da nossa glória excessiva, o espanhol enfim unido começava a levantar a sua sombra imensa” – como disse Eduardo Lourenço em O Labirinto da Saudade. Mas esse foi ainda o tempo em que Camões introduziu vários cultismos latinos, como abominoso, celso, cógnito, frondente ou fulvo. Também o Padre António Vieira e Francisco Manuel de Melo irão buscar à língua castelhana diversos adjetivos. Vieira usa assombroso, cabal, interessante ou lastimável. E Melo, atarantado, carinhoso, desprevenido, maltrapilho, presumido e sonso.

UMA LÍNGUA EM CIRCUITO ABERTO
Assim, o português torna-se transigente, integrador e cosmopolita e transmite essa característica a brasileiros e outros falantes. Afinal, se “o ato de nascimento da nossa língua” se fez de um modo determinado, a verdade é que “o português é, em si mesmo, a subversão, definidora e sistemática, do seu próprio ‘ato de nascimento’”, pela receção de diversas influências. “O português comum passa por um processo de elaboração que o separa das suas origens e que se sente como uma renovação” – no dizer de Ivo Castro. Mas serão as línguas galega e portuguesa uma mesma língua? É difícil a resposta e os argumentos são vários – mas devemos dizer que “os falantes dum e doutro (idioma) são o que se diz congenitamente bilingues”. Dispensam tradução, compreendem-se, não precisam de aprendizagem. Contudo e apesar de tentativas unificadoras há resistência à uniformização: “A lusitanizaçom excessiva dos textos por meio de palavras que nom se usam ou de uso mui limitado na Galiza, pode pôr dificuldades à leitura fluente dos nossos escritos”, como diz o Manual Galego de Língua e Estilo de 2007). Qual a lição de Fernando Venâncio? Antes do mais, a da matriz galega, depois a da diversidade de influências, como a dos moçárabes, principal veículo transmissor de um grande número de vocábulos árabes para o nosso léxico, através da parte bilingue da população, e ainda a dos caracteres próprios adquiridos com a cultura quinhentista… Sem idealizações ou simplificações, cuidando de exemplos concretos, trata-se, no fundo, de considerar a língua como realidade em movimento. Esta obra, procura dar-nos conta das origens peninsulares de um idioma bem surpreendente. Nascido em Mértola, em 1944, Fernando Venâncio diplomou-se em Linguística Geral na Universidade de Amesterdão (1976), onde obteve o doutoramento, tendo ensinado sobre a problemática e legislação das línguas minoritárias europeias e sobre a língua e a cultura portuguesa em Nimega, Utreque e Amesterdão.

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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