A Vida dos Livros

“As Literaturas em Língua Portuguesa (Das Origens aos Nossos Dias)”

O livro de José Carlos Seabra Pereira (Gradiva 2019) é um reportório fundamental para quem queira conhecer o panorama atual da língua portuguesa.

UMA OBRA INDISPENSÁVEL
É difícil proceder à apresentação de uma visão de conjunto das literaturas em língua portuguesa. Poucos poderiam encarregar-se de tal tarefa a contento, daí que a escolha de José Carlos Seabra Pereira merece aplauso, não só pelas provas académicas e pedagógicas sobejamente consagradas, mas também pelo resultado do trabalho agora dado à estampa em As Literaturas em Língua Portuguesa (Das Origens aos Nossos Dias) – em edição da Gradiva (2019), com o apoio do Instituto Politécnico de Macau e do Conselho Coordenador dos Institutos Superiores Politécnicos. Carlos Ascenso André, impulsionador do livro, está certo quando diz que “precisávamos (…) de uma obra que não se limitasse a Literatura Portuguesa, mas que se alargasse de forma abrangente, às demais literaturas de língua portuguesa. Mas precisávamos, igualmente, de que tal obra tivesse em conta esse público-alvo muito específico que são os milhares de aprendentes do Português mundo fora, com os seus condicionalismos próprios: um público heterogéneo, com patamares de conhecimento muito assimétricos, com interesses diversificados. Ou seja, uma obra acessível, mas rigorosa, útil a quem se limita à superfície das coisas, mas não menos instrumental para quem pretende descer mais fundo na sua reflexão e no seu conhecimento”. Não se trata, pois, de um manual, mas de um ensaio panorâmico, feito com especial cuidado, e apto a abrir novos caminhos e pistas, a partir da recusa uniformizadora e da consciência de que estamos perante uma língua de várias culturas, e portanto de diversas literaturas. Como língua, o português irá enriquecer-se pluralmente, num exigente desafio, pois as literaturas são, de facto, indicadores fundamentais para definirem os diversos sentidos que serão seguidos pela língua e pelas línguas. Por isso, o autor apresenta “um ensaio longo de roteiro das literaturas em língua portuguesa, que se distingue pela perspetiva de conceção e pelos parâmetros de elaboração”. E assim, em lugar de um tratamento minucioso e dilatado das épocas mais distantes, prefere uma “nítida expansão a partir da viragem para o século XX e decidida progressão pelos terrenos da literatura hodierna”. Se assistimos nesse momento à afirmação de maior pujança das literaturas portuguesa e brasileira, inicia-se também a consolidação das literaturas angolana e cabo-verdiana, além dos casos de Moçambique e Macau.

COMUNIDADE INTERLITERÁRIA
No dizer do autor, o livro procura captar e acompanhar um fluxo de águas vivas que, quanto mais se abre em inestimáveis deltas nacionais, mais parece dirigir-se para uma comunidade interliterária (na aceção de Dionýs Durisin)”. Estamos perante uma realidade multifacetada e multímoda em que se detetam pontos de encontro e de separação, num diálogo complexo a partir de inexoráveis raízes comuns, que coabitam com afluências divergentes. Há, assim, várias culturas e várias línguas que coabitam e dialogam. Longe de qualquer tendência uniformizadora ou centrada em hegemonias ou convergências, “não são rasuradas as tendências emergentes ou epigonais que coabitam com aquelas hegemonias estético-literárias em cada período e mormente nas fronteias fluidas do seu dealbar ou do seu ocaso”. Muito relevante é, aliás, a referência à língua literária portuguesa “com a interferência de variantes idiomáticas, de fenómenos de crioulização, de transvases de outras línguas”. De facto, quando nos referimos a uma língua falada em todos os continentes, percebemos que a consequência não é a uniformização global, mas sim a diversidade, as interferências e as complementaridades, tantas vezes exemplificadas em expressões e palavras de torna-viagem e em múltiplas trocas e partilhas de sentido. Daí que as simplificações seriam impossíveis e só um estudioso como J.C. Seabra Pereira poderia abalançar-se numa empresa desta dimensão, acompanhando as literaturas de uma língua antiga com as suas origens em textos de poesia lírica e satírica dos trovadores e dos cronistas – entre a Galiza e Portugal. E deste modo encontramos os fundos lírico, trágico e picaresco, que se vão projetando em caminhos diversíssimos.

UM PERCURSO SISTEMÁTICO
Propositadamente, encontramos um percurso lesto, mas não menos rigoroso, sobre o tempo cortês, o Renascimento e o Maneirismo, as Luzes e o arcadismo luso-brasileiro, os romantismos, o realismo e as suas margens, o decadentismo e o simbolismo na transição para o novo século, até à escrita vital de Aquilino… Vamos percorrendo, com sublinhados bastante nítidos, que exigem uma leitura atenta e compassada, os pontos fundamentais da literatura, com o aparecimento gradual e em crescendo da criação brasileira e depois africana. Veja-se a título de mero exemplo, como prolegómeno da parte mais desenvolvida da obra, a referência ao facto de Eça de Queiroz ficcionar “um vetor de caracterização peculiar do ethos português numa aproximação à literatura identitária de Portugal que nunca se quer isenta de alguma valência de ironia”. Fala-se, naturalmente, de A Ilustre Casa de Ramires e da ida de Gonçalo Mendes Ramires a África, num capítulo acrescentado pelo romancista, na versão final do livro, ao que foi publicado em folhetins na “Revista Moderna”. Noutro registo, refira-se a atenção do autor à “escrita vital” de Aquilino Ribeiro, surgido na margem do Modernismo, com um estilo versátil que se atualiza “numa réplica moderna daquele ‘porte desusado’ de ‘idioma novo e civilizado’ e daquela madre língua manejada com ‘agilidade e limpidez’ e ‘elegância sem perda de vigor e com ganho de harmonia’ que o mesmo Aquilino certeira e oportunamente louvava em Camões”. Considerando em Portugal e no Brasil “autores axiais” como Fernando Pessoa e Mário de Andrade, encontramos entre as duas guerras mundiais a emergência de uma modernidade estética de matriz baudelairiana, na “tradição do novo”. Modernismos e Vanguardas confrontam-se desde “A Águia” a “Orpheu”, até ao Livro do Desassossego. E Fernando Pessoa, ortónimo e heterónimos, procura intervir como patriota cosmopolita, para superar a condição decadente da nação portuguesa, na aceção, anteriana e sergiana, de atraso relativamente à modernidade sócio-cultural do Ocidente… Por seu lado, a “Presença”, relativamente ao Modernismo de “Orpheu”, representa não uma rutura, mas uma plataforma comum do inconformismo, do individualismo, da urgência do novo e do cosmopolita, considerando o valor da arte como instituição. E tem razão J. C. Seabra Pereira quando afirma que “a articulação de ‘Orpheu’ e de ‘Presença’ ganha em ser lida na ótica de dissociação conceptual e histórico-literária entre Modernismo e Vanguarda(s)” – sem esquecer as interferência vanguardistas nos dois modernismos e percebendo-se que, em toda a Europa, os dois movimentos são concomitantes mas não confundíveis. Os exemplos dados permitem ilustrar como a obra ora dada à estampa é um instrumento importante que abre perspetivas de trabalho em progresso para uma melhor compreensão no mundo da língua portuguesa não só das diferenças culturais, mas também das confluências interliterárias.  

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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