A Vida dos Livros

ÁRVORES COMPANHEIRAS

Por Guilherme d’Oliveira Martins

O meu Avô Mateus ensinou-me o nome das árvores, como fizera consigo o velho professor José Jorge Rodrigues, de Boliqueime, freguesia que dedica ao velho mestre-escola uma rua junto à praça principal, invocando o pedagogo, para quem não seria possível compreender o mundo e a liberdade sem amar a natureza, conhecendo-a nos seus mais insondáveis segredos. E a minha Avó Ana tinha as melhores mãos do mundo para plantar, enxertar, cuidar do seu jardim e das suas figueiras, que produziam os melhores figos, desde junho até ao Outono. Foi assim possível entender, desde que me conheço, que, antes de tudo a Cultura começa por ser a dos campos, a agricultura, do semear, do colher, do plantar e do cuidar.

Só os humanistas europeus do século XVI começaram a falar de cultura do espírito, para traduzir em língua moderna o que os gregos chamavam paideia e os romanos designavam por humanitas. Lembrei estes ecos de infância ao reler a “A Árvore em Portugal”, obra-prima de Francisco Caldeira Cabral e Gonçalo Ribeiro Telles, reeditada por ocasião do centenário deste pela Associação Portuguesa de Arquitetos Paisagistas. É um livro indispensável e comovente, onde aprendemos “a importância de plantar sempre que possível as nossas árvores espontâneas”, porque “dão-nos sempre melhor garantia de desenvolvimento e permanência, porque é ótima a sua adaptação ao meio”. E, considerando o cuidado da paisagem, “devemos pedir às árvores o mesmo que deseja qualquer pessoa educada: não dar nas vistas”. E lembro, apenas ao sabor da memória, a lista das árvores que meu avô me ensinou, conhecendo-as pelo nome vulgar, pelo porte, pela folhagem, pela cor, pela floração como amáveis seres vivos que nos fazem companhia e nos ajudam. As vetustas oliveiras, em tantos casos com mais de meio milénio de vida, as azinheiras, os carrascos, os carvalhos, os choupos, os loureiros, os medronheiros, os pinheiros-mansos, as palmeiras-das-vassouras, os sobreiros, as frágeis amendoeiras, amargas e doces, as variadas figueiras, com o complexo e misterioso processo de “toque”, considerando que a tradição mais antiga diz que são estas as verdadeiras árvores do paraíso, até às generosas alfarrobeiras, que nos podem dar tudo, desde a sombra e fixação do solo, à diversidade do fruto. E continuamos com o castanheiro, o damasqueiro, a laranjeira (célebre até ao Levante mediterrânico, onde a laranja se designa como portugália), a nogueira, a nespereira, o pinheiro-bravo, mas também a amoreira (que nos afadigávamos a descobrir, por causa dos nossos bichos-da-seda famintos) – eis o mundo que se nos ia revelando nas deambulações campestres, numa apaixonante e inesgotável descoberta.

Em tantas conversas, Ribeiro Telles insistia na perceção de que, entre nós, “a mata cobria outrora toda a extensão do nosso território”. “Não percebemos a árvore sem adivinhar o seu forte sistema radicular, não entendemos o prado sem sentir sob ele a vivificante humidade do solo”.  A paisagem é a segunda natureza, que “garante uma ética de que fazem parte o tempo e a perenidade”. A floresta portuguesa é a mata, numa ligação fecunda entre o Mediterrâneo e o Atlântico. “Portanto, a destruição da mata não pode ir além de um certo ponto, sem comprometer gravemente o equilíbrio ótimo para o Homem”. Quando no Conventinho da Arrábida avistamos a paisagem magnífica do Mediterrâneo no Atlântico, e lembramos os poemas de Frei Agostinho da Cruz, compreendemos o que Gonçalo escreveu na revista “Cidade Nova” em 1956: “O homem desempenha na modelação da paisagem um papel muito importante: pode ser considerado, neste aspeto, como um autêntico criador de beleza”. E volto às antigas caminhadas remansosas e ao percurso cadenciado que levava a entender a magia da paisagem como essência do património cultural – ali está a antiga azinheira, acolá a nespereira que era a perdição dos estios de outrora…

Guilherme d’Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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