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ANTÓNIO ALÇADA BAPTISTA

Publicamos a invocação do escritor por Guilherme d’Oliveira Martins

ANTÓNIO OU A SOLIDÃO DERROTADA…
Por Guilherme d’Oliveira Martins 


                                                                   
“Ao ir-me afundando no cepticismo racional, por um lado, e, por outro, no
desespero sentimental, incendiou-se-me a fome de Deus, e o sufoco do
espírito fez-me sentir, com a sua falta, a sua realidade. E quis que haja Deus,
que exista Deus. E Deus não existe mas antes sobreexiste e está
sustentando a nossa existência existindo-nos”.
Miguel de Unamuno


Vou-me repetir, mas fazê-lo é a reiteração da amizade e da admiração que tenho por António Alçada. Tenho tido o privilégio, na minha vida, de conhecer pessoas que se singularizaram pela boa influência que tiveram e pela extraordinária riqueza das suas vidas e obras. Este é um dos casos que ilustram esse meu especial orgulho. Como um Diógenes afectuoso sempre o vi empunhando a lanterna que procura a verdade e a amizade, que, longe dos dogmatismos e da rigidez, tendem a abrir horizontes, a delinear novos caminhos e a pôr as pessoas no centro dos acontecimentos e da História. José Bergamín disse que se fosse objecto era objectivo; como era sujeito era subjectivo – e António repete-o e sente-o…


O António Alçada Baptista foi-me dado na adolescência, na primeira série de “O Tempo e o Modo”, nas colecções da Moraes, na “Peregrinação Interior” e nas suas crónicas, que lia religiosamente. E não esqueço como me levou até, por exemplo, à poesia Alexandre O’Neill, e do que esta significava de natural complemento do que o António nos dizia: “Quem? O infinito? / Diz-lhe que entre. / Faz bem ao infinito / Estar entre gente.” Abandono Vigiado (1960). Assim como não esqueço o ter-me feito gostar ainda mais do Brasil, a partir de Alceu Amoroso Lima e da amizade com Odylo Costa, filho, até Jorge Amado ou ao extraordinário João Guimarães Rosa – o mesmo que dizia: “vivendo se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas” ou que “Deus existe mesmo quando não há. Mas o demónio não precisa de existir para haver”. E um dia o António lembrou que “a Carta de Pêro Vaz de Caminha dá-nos talvez o único exemplo que conheço de duas civilizações que se encontram uma com a outra a dançar e não a guerrear-se”. Senti-o pessoalmente nas ruas da Bahia, num dia em que na Fundação Jorge Amado o António foi o grande ausente, sempre lembrado.


Conhecemo-nos pessoalmente nos anos setenta e lembro-me de lhe ter dito, um dia, anos passados, à porta da “Mercearia”, no coração da Madragoa, depois de almoçarmos com Pierre Rosanvallon, e perante a sua surpresa que ainda hoje recorda, da importância da sua influência no pensamento português contemporâneo e do muito que lhe devia na minha formação intelectual e cívica, que me levava a considerá-lo como mestre, mestre de vida, de interrogações e de caminhos abertos. Não há, pois, muitas explicações a dar. As amizades como as afinidades electivas criam-se assim, fazem-se fazendo. E o certo é que o António procura exprimir-se como a pessoa que é, sempre disponível para partilhar – valores, recordações ou episódios inesquecíveis – que é a sua maneira de contribuir para que o mundo seja melhor.


É absolutamente extraordinário ouvir as suas histórias, fruto de uma memória prodigiosa para fixar os pormenores, os sinais, os significados e os sentidos. O conhecido episódio do Padre Anchieta é um bom exemplo. E se bem que muito conhecido merece invocação: “com urgência para regressar a uma aldeia, pediu aos carregadores índios para irem depressa”. Depois de três dias de marchas forçadas, os índios sentaram-se a descansar. O Padre não compreendeu a paragem, e eles explicaram: “temos vindo depressa demais e a nossa alma ficou lá para trás. Temos de esperar que ela regresse ao nosso corpo”.


E há mil outros casos, como o da frase daquela senhora que procurava uma rua, ali próximo do Bairro Alto: “todos sabem tudo, cada um sabe o que sabe”. Isto, para não falar da invocação do conto enigmático de El Aleph de Borges Os Teólogos – em que Aureliano e João de Panónia, o ortodoxo e o herege, se encontram perante Deus no julgamento final, descobrindo que para a insondável divindade o aborrecedor e o aborrecido, o acusador e a vítima formavam ambos uma só pessoa…


Houve um livro (de muitos projectos que o António teve) que nunca chegou a ver a luz do dia. Chamar-se-ia “Histórias de Maus – Elementos para uma Anti-hagiografia”. Não sei o que o António esperaria escrever e demonstrar nessa obra, que, apesar do título, trataria dos temas de que ele sempre gostou: a descoberta dos sentimentos e ressentimentos que unem e dividem as pessoas, em suma, daquilo que as põe em contacto umas com as outras, entre a comédia ou a tragédia da vida. E como encontramos em François Mauriac, em Bernanos, em Graham Greene, Evelyn Waugh ou Flannery O’Connor essa interrogação da fronteira que nos aproxima dos “maus” é exactamente a mesma que nos permite entender o bem. No fundo, Frei Bento Domingues tem razão quando nos fala da importância da “teologia narrativa” em António Alçada Baptista e da sua atenção ao sagrado.


Os livros do António fazem longas reflexões sobre a capacidade de compreender e sobre a relação com o concreto do outro. Não basta saber e conhecer, a razão é fundamental mas insuficiente. Há que compreender os limites do ser. E é neste sentido que as personagens que ele cria e que procuram ir além de ser úteis se tornam exemplos de uma exigência de tempo e de reflexão. Falta-nos demasiado tempo para as coisas essenciais, e ficamo-nos pela superfície, por medo ou preguiça de reflectir, de pensar e de voltar a pensar. Como são diferentes Francisco e André em “O Riso de Deus” e, no entanto, a certa altura encontram-se e nas diferenças profundas cada um torna-se o outro lado do outro. “Hoje já não posso ouvir falar em dialéctica, em competição, em vencer na vida, porque acho que é com nomes desses que se tem tentado encobrir o projecto sempre adiado de descobrir como saber usar a nossa liberdade e, com ela, implantar no mundo o lugar do homem” – lê-se no referido romance. E o Dr. Domingos Lobo, com a sabedoria da velha Goa, diz, a descer a Avenida, com Francisco: “- Sabe, a Europa é o continente da dúvida e nós, lá no Oriente, estamos presos pela fé. Eu não sei ainda bem se são as dúvidas se as certezas que fazem mover o mundo”.


Percebe-se, no entanto, que o escritor se admire por não haver, nos tempos que correm, uma “teologia da felicidade” (ou uma “teologia da ternura”para usar a expressão de Heinrich Böll no mesmo comprimento de onda), facto tanto mais estranho quanto um dos apelos “que resume e engrandece o Evangelho, é a proposta de felicidade contida nas Bem-Aventuranças: – Felizes aqueles que…” Não seguir o apelo do Mestre das Bem-Aventuranças, do Pobre de Assis, de Lanza del Vasto ou de Abel Varzim é o pecado maior do nosso tempo… E como escreveu Martin Buber: “Deus não me pedirá contas de eu não ter sido Francisco de Assis ou mesmo Jesus Cristo. Deus vai-me pedir contas de eu não ter sido completa e intensamente Martin Buber”. É aqui que se centra o valor universal e permanente da dignidade da pessoa humana.


O que mais admiro no António? Digo, sem hesitar, que é o facto de ser um homem livre, que usa os afectos, os rituais da amizade, a arte do diálogo e da conversa como método para compreender e aproximar pessoas. É um praticante activo da “aristocracia do comportamento”, por isso lhe encontramos uma coerência, uma generosidade, uma dúvida serena, uma prática permanente de procura do sentido da dignidade humana a toda a prova – demarcando-se com o tempo e a sabedoria dos “sentimentos que infectaram o espírito do tempo: a culpabilidade dos ricos e o ressentimento dos pobres”.


Sentimos a recordação forte do seu professor de Santo Tirso, o Padre António Magalhães, pedagogo de liberdade. “Andava por ali. Amigo de Leonardo Coimbra e Pascoaes, de Casais Monteiro e José Marinho, foi quem primeiro me aceitou e me animou a olhar interrogativamente para o homem e para o mundo.”. Descobrimos a sombra intensa de Lanza del Vasto: “eu tenho de passar pelo amor dos outros para chegar à minha serenidade e creio que a caridade é mais importante do que a sabedoria”.


Literatura e vida não se separam. Por isso assistimos à sua recusa insistente de qualquer pretensiosismo erudito. “Viver é a obra de arte”. As suas pequenas histórias, a sua fiel e genuína admiração por Fernão Mendes Pinto (o “pobre de mim”), a genuína simplicidade – tudo isso o singulariza, como alguém que sente prazer por uma vida povoada de pessoas com alguma coisa para dizer. José Cardoso Pires desejava, por isso, muito reencontrar o “pássaro migrador rodeado de amigos” e disse dele que “a amizade sem humor não sabe ser tolerante” e “sempre que nos lembramos do muito que fez pela liberdade cultural e religiosa deste país, vemo-lo outra vez jovem a sorrir-nos de longe, num convite à aventura de pensar”.


O António, procurando compreender a realidade humana que nos cerca, inverteu, assim, os termos de uma frase de Theodor Adorno que lhe foi dita por Jean-Marie Domenach – “é preciso ter consciência sobre que tipo de conhecimento está assente a nossa ignorância”. E num domingo nublado, em que viemos de Marvão até aos Capuchos na Serra de Sintra, com Domenach, com a Helena e o Alberto, recordámos essa espécie de ignorância que o conhecimento e a razão alimentam…


Edgar Morin pede-nos, por isso, como Montaigne, uma cabeça bem feita e não bem cheia… E de novo com a Helena, cuja luminosidade enriquecia qualquer amizade e qualquer caminho em direcção ao conhecer, pudemos perceber, no círculo das suas amizades e dos seus saberes, que há poucas coisas adquiridas e o mais importante está em aprofundar o relacionamento entre as pessoas, e os seus saberes, que têm afinidades, laços, cumplicidades. E se falo de ideal de pensamento não posso esquecer a deliciosa recordação do “célebre caso da não-criação de porcos” que ilustra o que Ortega dizia sobre a especialidade ser um artifício da sociedade para obter o rendimento máximo da estupidez humana…


Alexandre O’Neill, o poeta que António tanto admira, disse um dia que gostaria de escrever um ensaio intitulado Das tias em António Alçada Baptista. Por isso, Tia Suzana, Meu Amor (1989) é dedicado ao poeta, com “um sussurro de saudade”. As tias são uma metáfora ou a verdadeira introdução ao universo feminino. Mas essas tias míticas são ainda a ligação às raízes de um mundo da província, à paisagem rural, antes da ansiedade do consumo, do imediatismo e da tirania da indiferença. Numa entrevista a Inês Pedrosa, o António disse, aliás, que o universo feminino se distingue por “uma história de generosidade, uma história dos afectos, uma história de procura de sentido de vida, de apreciação poética da vida, de percepção solidária, de solidariedade com as dores e os sofrimentos”… 


Denis de Rougemont, no seu O Amor e o Ocidente, abriu pistas para a valorização dos afectos, como marca de fidelidade e de compreensão da natureza humana. E pôs-nos de sobreaviso em relação às paixões avassaladoras e ao seu sentido trágico. René Dubos vem à baila: “as descobertas que condicionarão o futuro não hão-de vir do conhecimento do que se passa na célula, na bioquímica, na ciência ou na técnica, mas do que nos ajude a compreender os mecanismos centrais que condicionam a afectividade”.


O amor, a serenidade e a paz podem ser cultivados. Mas como integrar tudo isso nas nossas relações para que “a violência, a astúcia e a agressividade não sejam moeda de troca das relações humanas”. O valor dos afectos permite a passagem lenta da natureza à cultura… “Repara que o Evangelho não nos manda amar a humanidade, mas o próximo. É que a humanidade é uma abstracção” – disse-lhe um dia Lanza del Vasto. E de tanto se falar de crise, quase nos esquecemos do que podemos fazer para compreender quem está connosco. Compreender o mundo é, afinal, melhor do que transformá-lo enquanto fim cego e totalitário.


Mais importante do que os tratados de edificação moral é a vida prática e os exemplos colhidos nela. O anti-herói Fernão Mendes Pinto e as suas mil peripécias voluntárias e involuntárias revelam muito melhor o inesperado sentido da vida do que alguém que se leve muito a sério. O Quincas Berro d’Água de Jorge Amado, apesar de parecer aos nossos olhos de europeus um caso de compaixão, desperta para a esperança e para o gosto de viver. E a poesia de Alexandre O’Neill, sempre ele, dá-nos bem o outro lado da realidade, feito de ironia e de non sense, em nome da busca muito séria de sentido – “é tempo de unir o mesmo gesto/ o real e o sonho…/É tempo de acordar nas trevas do real/ na desolada promessa/ do dia verdadeiro”.


E o António, autor da Peregrinação Interior (I, 1971; II, 1982), bem recordado das aventuras de Sandokan e de Texas Jack, continua com a cabeça povoada de projectos e de imaginárias aventuras – as mesmas que o levam a amar intensamente as pessoas, e por isso mesmo o Brasil, lugar que faz parte da sua sobrevivência – “não tanto como escritor, mas como homem que procura ter uma relação com a vida na serenidade, na alegria, na paz para que fomos criados”. E costuma dizer: “tenho a certeza que Kierkegaard não teria escrito O Desespero Humano se tivesse nascido na Bahia, nem o Jorge Amado o Quincas Berro d’Água se fosse dinamarquês”.


A epopeia de O Tempo e o Modo, iniciada em 1963, merece ser lembrada. Após o terramoto político de 1958 (candidatura de Delgado, carta do Bispo do Porto), António Alçada pusera mãos à obra na editora Moraes. Com alguns amigos, vindos dos movimentos católicos, como João Bénard da Costa, Pedro Tamen, Alberto Vaz da Silva, Nuno de Bragança e José Domingos de Morais concretiza a partir do “Pacto” (um projecto de vida pessoal e comunitário) uma revista de “pensamento e acção”, aberta e crítica, que era necessária – tal como foram em Espanha os Cuadernos para el Dialogo, de Joaquín Ruiz-Giménez, também em 1963. Parecia haver mercado – e o resto viria por acréscimo. Mário Soares, Francisco Salgado Zenha e Jorge Sampaio apoiam a iniciativa, conscientes da importância do diálogo democrático com os católicos. António Alçada é, todavia, obrigado a usar eufemismos de escrita, que hoje quase nos fazem sorrir, fazendo, em vez da referência às “instituições democráticas”, uma alusão críptica a “instituições que pressupõem uma certa dialéctica”. A censura não dava tréguas – contra os perigosos “peixinhos vermelhos em pia de água benta”. Nas artes e letras, a revista revelou forte sentido de actualidade, rompendo com a predominância de um certo neo-realismo. Jorge de Sena, Vergílio Ferreira Agustina Bessa Luís, Sophia de Mello Breyner, Ruy Belo ou até António Sérgio são alvo de especiais atenções, estudo e reflexão.


Eduardo Lourenço diz que “é para trazer à luz, mostrar aos outros, e a si mesmo, o que ainda não era visível, palpável, audível, que a obra nasce” (n.º6, Junho 1963). O sucesso editorial foi miragem. Ao projecto da revista somam-se, por ocasião do Vaticano II, a revista Concilium, bem como a colaboração com a Association Internationale pour la Liberté de la Culture de Pierre Emmanuel. Lendo hoje a colecção da revista, fácil é de confirmar a extraordinária importância dos textos e das colaborações. Era a sociedade portuguesa que se abria. Denunciava-se a desordem estabelecida.


E, se dúvidas houvesse, valem “os depoimentos das gerações que nos seguiram, para quem essa aventura foi um acontecimento referência que acordou alguns e confortou outros perante um tempo carregado de dúvidas e inquietações”. Uma certa dialéctica viraria democracia. António quis acreditar numa evolução serena. Isso era impossível. Depressa se desiludiu. Mas, para si, o mais importante era a liberdade e as diferenças.


Coerentemente, continuou a remar contra a maré. De acordo com o saber náutico sempre achou que se todos se juntam a bombordo ou a estibordo, a embarcação naufraga. É sempre indispensável que alguém fique do outro lado, mesmo que as incompreensões continuem. Assim como assim…


Aos banquetes de sabedoria pura, o António contrapõe o diálogo dos afectos, com elevação e inteligência. Afinal, é de sabedoria que se trata, a da humanidade que se procura. Por isso, invoca Borges: “Creo que un dia mereceremos que no haya gobiernos”. Mas insiste: precisamos de merecer. Oiçamos, no entanto, a tia Suzana: “Julgo que o mais importante são as palavras. Quando se vive a solidão, sabe-se que, por causa duma palavra verdadeira, caem muitas vezes as muralhas que levantámos à volta das nossas almas. Uma palavra verdadeira pode ser um milagre: é a solidão derrotada”. E essa solidão derrotada é porventura a principal marca da obra do António Alçada e da sua vida. Apesar das suas depressões cíclicas, a verdade é que foi sempre a busca das palavras (e das pessoas que as proferem e que buscam nelas sentido) que o ocupou para nos levar à compreensão do tempo e do mundo. Como ele nos diz, alguns que procuram “a verdadeira relação com Deus – como Deus é um ser superior, e os que se dedicam a isso, seres superiores -, voltam-se para as ideias, os silogismos, as lógicas, as abstracções. Ora, uma teologia abstracta é uma idolatria”.

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