A Vida dos Livros

André Gonçalves Pereira (1936-2019)

Foi um mestre de Direito Internacional Público e um humanista que há pouco nos deixou e que recordamos.

ADVOGADO E PROFESSOR
André Gonçalves Pereira foi um dos Advogados mais brilhantes que conheci, foi um Professor, pedagogicamente irrepreensível, de horizontes abertos e profundo conhecedor da evolução científica nos domínios que estudou e em que ensinou, em especial o Direito Internacional Público, situando-se entre os melhores além-fronteiras. Foi um humanista cultíssimo, para quem a cultura não era um mero luxo, mas um modo de tornar a vida um fator de dignidade e de felicidade. No domínio cultural foi um exemplo de exigência, de qualidade e de critério. Era um verdadeiro “conhecedor das Artes” e toda a sua vida e formação permitiram-lhe aprofundar essas extraordinárias qualidades de requinte e de bom gosto – com compreensão exata da evolução dos tempos, da inovação criadora, da diversidade e da complexidade. A Casa Redonda da Quinta do Lago, em que viveu, ligava o bom gosto, a arte, a singularidade e a criação de condições especiais para a hospitalidade, o convívio e o bem-estar. Eis por que é indispensável recordar o cultor exigente das humanidades e da sensibilidade. Desde muito cedo, designadamente no Liceu Pedro Nunes, afirmou as suas qualidades de inteligência, as capacidades de trabalho e o brilhantismo na apresentação e no desenvolvimento dos temas e questões que abordava, com originalidade e um fino sentido de humor. Quando iniciou o curso de Direito depressa revelou essas qualidades, que lhe permitiram destacar-se junto dos professores e entre os colegas. Desde cedo, o Professor Marcelo Caetano, reconheceu as grandes qualidades do jovem, que viriam a manifestar-se em estudos tornados clássicos e de leitura obrigatória, pela sua excecional qualidade, como “Erro e Ilegalidade no Ato Administrativo”, de 1962, que apesar da distância do tempo e das profundas alterações da ordem jurídica, se revela um caso modelar para a apresentação e desenvolvimento de um tema complexo, mas indispensável.

A EXPERIÊNCIA NAS NAÇÕES UNIDAS
Fui seu aluno, e tive oportunidade, pela vida fora, contar com a sua estima pessoal e o seu conselho. Não esqueço a expressão da sua genuína amizade quando iniciei funções na Fundação Calouste Gulbenkian, instituição que tanto lhe deveu. De facto, foi alguém que sempre se entregou de alma e coração às funções que lhe foram confiadas ao longo da vida. A sua experiência das Nações Unidas, nos anos sessenta, na Comissão Jurídica, permitiu-lhe conhecer melhor a sociedade norte-americana e o clima estratégico mundial. Em toda a sua carreira profissional não só se afirmou ao melhor nível, mas também soube formar pessoas, dar bons exemplos e abrir novos caminhos e perspetivas. Filho do Professor Armando Gonçalves Pereira, advogado, que viria a ser diretor do Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras e de sua mulher Viviane Delaunay, descendia pelo lado paterno de uma antiga e ilustre família de Goa, sendo sobrinho-neto de Luís Cunha Gonçalves, ilustre civilista e pelo lado materno de uma antiga família aristocrática francesa. Os pais foram dois apoios fundamentais na formação dos dois irmãos Jorge e André, o que permitiu a ambos beneficiarem de um ambiente culto e de excelentes condições para desenvolverem as suas qualidades pessoais, intelectuais e profissionais. Lembro a ligação da família às Edições Ática, na Rua Alexandre Herculano, editora de Fernando Pessoa e de Mário de Sá-Carneiro e que tomou a designação da antiga casa fundada por Luís de Montalvor no Chiado. Aí viu André Gonçalves Pereira publicado o seu “Curso de Direito Internacional Público” (depois desenvolvido mercê da parceria académica com Fausto de Quadros). Para André Gonçalves Pereira não havia domínios reservados ou estranhos. Era um leitor entusiasta e sistemático. Os grandes autores e as grandes obras, na literatura ou na pintura, eram-lhe familiares. A música era uma das suas paixões. Os novos caminhos da ciência eram por si seguidos com atenção e curiosidade. Mas a História era, de há muito, um campo de exceção. Conhecia a geoestratégia, a partir da compreensão profunda das raízes históricas. O Médio Oriente era uma realidade difícil que conhecia profundamente, como ficou evidente quando exerceu funções na Fundação Gulbenkian. Mas se a economia do petróleo não tinha segredos, nas diversas fases da sua evolução, o certo é que conhecia como poucos o caleidoscópio dos povos da região, desde o crescente fértil e do Mediterrâneo Oriental, até ao subcontinente indiano e às origens indo-europeias das nossas línguas e culturas. Discutia em pormenor as causas e consequências das guerras pérsicas e do Peloponeso, até às opões de Aníbal nas guerras púnicas – mas também as circunstâncias que rodearam a complexa negociação do Tratado de Tordesilhas ou o erro de cálculo de Magalhães sobre a situação das ilhas Molucas… Era um viajante apaixonado, para quem a História só podia ser entendida através de um bom conhecimento da Geografia. Viajou em todos os continentes em procura de exotismo, de lugares míticos e de referências civilizacionais (Kilimanjaro, Taj Maal, fiordes noruegueses). Preparava meticulosamente essas expedições que tinham, a um tempo, finalidades lúdicas e pedagógicas. A vida possuía afinal o prazer do convívio e do conhecimento, do usufruto da beleza, da descoberta e da aventura.

UNIVERSALISMO E PRIMADO DOS DIREITOS HUMANOS
Acreditando no universalismo da dignidade humana, no primado do Direito e na legitimidade democrática tinha o ceticismo próprio da inteligência fulgurante, que era capaz de ver a um tempo as vantagens e os inconvenientes de qualquer solução. Era um europeísta moderado e realista, consciente de que, como ensinou, as instituições europeias deviam considerar a representação e a participação dos cidadãos. Nesse sentido, desconfiava do voluntarismo e da burocracia, mas sabia que as condições para a paz e a segurança precisariam de uma legitimidade supranacional, que completasse as legitimidades nacionais. No dualismo de Henry Kissinger apresentado em “Diplomacia”, estava, assim, mais próximo de Theodore Roosevelt do que de Woodrow Wilson sobre o conceito de balança do poder… O seu sentido de humor era desarmante, mas era a clara demonstração de uma inteligência superior e de uma independência a toda a prova. Um dia disse: “Não sei se esta mania da independência é boa ou má. Nunca escolhi. E não tenciono fazer as contas: como não vou a tempo de corrigir, já não vale a pena”. Hoje podemos dizer que a sua atitude venceu, e deixa uma memória extraordinária de coerência e de exemplo. Por outro lado, não podemos esquecer a sua generosidade e um forte sentido de solidariedade humana, a partir da valorização da importância da Educação. Temos presente a Escolinha do André, no Xai Xai, na província de Gaza, em Moçambique, onde as Irmãs de Santa Catarina de Sena recebem crianças desde o pré-escolar à 5ª classe. Os seus discípulos não esquecem as suas qualidades – e sabem que o melhor modo de preservar a exigência é a ligação efetiva entre a justiça e o senso comum.

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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