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Alma de pé sem cair

Alberto Vaz da Silva invoca Marguerite Yourcenar… ler mais

Conheci Marguerite ouvindo-lhe os olhos e vendo-lhe a voz. Sempre me perturbou a sua letra que não era expressão de nada mas envólucro, como os panejamentos de seda ou lã fina que usava pela cabeça. Era uma coluna de mercúrio cinzenta e brilhante. Figura grega, mas também romana, por momentos a sua expressão era invadida por tempestades de areia.

Depois de extensamente a ter lido e traduzido, fixei-me na “Voix des Choses”, diário de viagem e livro de cabeceira que lhe servia também de provisão de coragem e me anunciou a última vez que nos vimos. São textos de sabedorias várias, de S. Bernardo a Rilke, do Corão a Walt Whitman, dos Purana ao nô. Aí conta a história da placa de malaquite que durante anos negociou em Nova Delhi para oferecer a Jerry Wilson, “placa mineral de desenho perfeito e quase tão antiga como a Terra” que se partiu um dia, como o camafeu montado num anel que o pai lhe deu. Na altura, pô-lo de lado. “Se fosse hoje”, reconheceria mais tarde, “esse pequeno defeito seria razão para gostar ainda mais dele”.

É esta última Marguerite que guardo silenciosamente em mim. A que me deu a conhecer o cemitério dos 47 Rônins em Tokyo, a região das miragens no Kenya, e S. Martinho: “há seres através dos quais Deus me amou”. De todo este livro secreto se desprende uma vastidão indescritível: a das fotografias de Jerry Wilson e a das inesquecíveis traduções das Bem-aventuranças, do “Blowing in the wind” de Bob Dylan, de Confucio – “O homem bem nascido é calmo e espaçoso. O vulgar agita-se sempre”; do Tao-Te-Ching – “O que sabe não fala; o que fala é ignorante”.

Nascida há cem anos, Marguerite Yourcenar confunde-se em mim com Agrippa de Nettesheim: “alma de pé sem cair”.

Alberto Vaz da Silva

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