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Agustina Bessa-Luís ganha Prémio Camões

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O Prémio Camões 2004 foi atribuído à romancista portuguesa Agustina Bessa-Luís, reconhecendo, assim, a importância fundamental da obra de uma autora que tem dedicado toda a sua vida à reflexão sobre a realidade portuguesa, sobre os nossos sentimentos contraditórios e sobre a conflitualidade paradoxal de uma sociedade dividida entre o fechamento e a abertura.


“Foi nesse ano (1963) que, em casa de Sophia ou em casa de José Palla e Carmo, a conhecemos. Mas “os caminhos da amizade seriam melancólicos, se não fosse o mistério da sua própria virtude”. Ao longo de 40 anos, desde esse 1963 do “Sermão do Fogo”, dos almoços na Caravela com a Sophia e da história do lobo que inventou a amizade, “tempos em que Ferrabrás era mundo e os porcos passeavam pelas cidades com uma faca espetada no lombo, meios cozidos, meios assados e uma maçã vermelha na boca”, até hoje terei estado com Agustina umas 40 vezes, mas se sempre a li perto, sempre a vi longe”.

João Bénard da Costa. Público, 28.05.04


Agustina “Honoris Causa”

Freud acreditou até ao fim no poder absoluto das palavras, para ele “mágicas desde a origem”. Mesmo quando descobriu o “poder demoníaco da pulsão de morte” sustentou que ele só não tinha império sobre a palavra escrita. No princípio era o Verbo e o verbo é a luz imperecível.

Foi o poder mágico da palavra quase imóvel que me deixou assombrado quando, logo após a sua publicação, descobri “A Sibila”. Nessa altura Agustina era ainda desconhecida e o que sobre ela escrevi no “Encontro” intrigou algumas pessoas.

Depois vieram “Os Incuráveis” e estes dois livros sempre me pareceram a agulha magnética de uma bússola que pelo seu ligeiro tremor anuncia a agitação dos pólos do Universo.

Conheci a Agustina num jantar em casa do José Palla e Carmo. Lembro-me do cheiro a canela dos ligustros que já entrava pelas janelas abertas e de como o João Bénard da Costa e eu a ladeámos barbaramente horas a fio. Logo a seguir mandou-me um livro com uma dedicatória que falava em flores pascais e de como “fui eu que fiquei sem jantar para ouvir a música própria de cada um”.

Quando mais grassava o furor esquerdista contra a sua assídua colaboração no “Tempo e o Modo” que o João e eu provocámos, recebi uma carta dela, na sua escrita quase mineral, que rezava assim:

“Esposende, 20 de Março de 1965

Meu caro Bénard da Costa

Encontrei hoje um sobrescrito com o seu nome e endereço. Isto decidiu-me a escrever-lhe. A penúria tem rasgos mais esbanjadores do que a própria fortuna, e para não inutilizar um papel que o vento fez bulir numa gaveta aberta, disponho-me a privar-me de uma unha de espírito.

Estou realmente pobre e faminta. Disseram-me para eu perdoar não sei quê ou quanto, do Tempo e o Modo, dinheiros largos para o que eu sou hoje e não era ontem. Perdoar o infinito passado ou o infinito futuro? Não me deram cheque, nem nota, nem metal sonante. Que lágrimas os enternecem? Que dívidas de bulas de indultos?

Eu projecto agora uma pequena caminhada a Itália, preciso de meias solas nos meus sapatinhos de ferro e não é o vento norte quem me ajuda. Se eu tivesse um sobrescrito com o nome do António Alçada ele ouvia-me. Estou quase a rasgar esta carta e a crer na eternidade. Mas não; preciso do meu capital, e o juro, que são doze por cento.

Interceda neste espinhoso caso. Ou venda-me esta carta a um coleccionador. Faça qualquer coisa. Caem-me dos dedos os anéis, da míngua em que estou. E o Natal vem tão longe ainda!

Sua amiga.

Maria Agustina Bessa-Luís

P.S. – Afinal o sobrescrito era para o Alberto Vaz da Silva.”







No momento em que Agustina ganhou o prémio Camões, julgo que a divulgação desta carta, que me é permitida “honoris causa”, é a melhor homenagem que lhe posso prestar. O João e eu entrámos em histeria, a paixão subiu ao rubro e o original da carta, tão bem guardado como cobiçadíssimo tesouro, assumiçou-se-me, restando apenas o envelope. Sei que o reencontrarei quando o João libertar o seu feitiço – que lançou só porque um dia esse envelope misterioso que o vento fez bulir numa gaveta por acaso, talvez, falava de mim.

Em 1972 foi a aventura do “Comercio do Porto”. Agustina escreveu-me no rescaldo: “De acordo com a lei da imprensa que se seguirá nem poderei ser directora, não tenho suficientes habilitações literárias. E não. Dou mais erros hoje do que na terceira classe da madre Magalhães, que era feroz em ortografia e que era sádica, como boa educadora que era. Não me educou, nem ninguém. Agora sofro essa boémia infantil, o gosto de faltar à aula, e não ir às festas do colégio – tão sem fulgor, tão suavíssimas.

Eu tenho pena de desgostar as pessoas. Não acabamos de acertar, eu com elas, elas comigo. Só um minuto de boas vindas, o tempo de tirar o retrato, e nem isso.

Teria sido um belo jornal feito por gente formidável, eu tinha colaboração de vários países e uma equipa de redacção muito boa. Mas por sadismo, por impulso educador, não quiseram. A dobrada à moda do Porto não se deve comer fria, e pensaram que sim”.

Na sua escrita mineral, como se um vulcão tivesse explodido e das profundidades da terra surgissem acumulações várias em busca de energias superiores, Agustina confirma que os erros ortográficos são revoltas contra instintos sádicos que nos perseguem pela vida fora.

Em 1989, na viagem que fizemos ao Brasil com o Centro Nacional de Cultura, ao descer as íngremes escadarias da Prefeitura de Congonhas do Campo, deu-me o braço e confessou-me, a propósito da beleza estonteante da secretária do Prefeito, que tinha introjectada em si uma Zza-Zza Gabor. Foi também nessa altura que percorremos todos os joalheiros de Minas Gerais à procura de rubilite, espécie em extinção de turmalina rubra que ela ambicionava e acabámos por conseguir apenas um colar de ágatas, muito iguais e quase transparentes, semi-preciosas e raras.

No regresso de Petrópolis encerrou-se num mutismo absoluto, olhando a paisagem pela janela do autocarro até chegarmos ao Rio. Quando eu imaginava que novo romance, projecto ou genial descoberta a visita ao museu imperial e esse passeio lhe haviam suscitado, voltou-se para mim com um sorriso: “contei cento e noventa e oito carros a álcool. Uma coisa assim pode resolver a economia brasileira”.

Se é verdade que do reino mineral surgem as grandes convulsões nele, apesar de tudo, a desordem é mínima: a monumental obra de Agustina lembra-me hoje o aço bem temperado com que se forja o gládio do espírito, a espada de fogo que vem trazer ao mundo a guerra e o desassossego, mas também separar os justos dos danados.

Alberto Vaz da Silva




Agustina Bessa-Luís e Alberto Vaz da Silva, 1989.

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