A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

Tucídides é o primeiro historiador no sentido em que usamos esse conceito nos dias de hoje. Autor de uma só obra, “História da Guerra do Peloponeso”, introduziu na literatura e no pensamento político uma concepção significativamente diferente da que foi praticada por Heródoto. Hoje escolhemos esse texto para podermos reflectir sobre a importância da decisão estratégica e das suas condicionantes. E no caso de Tucídides podemos dizer que as melhores análises modernas sobre a história política têm-se debruçado sobre este texto clássico fundamental.

A VIDA DOS LIVROS
De 27 de Julho a 2 de Agosto de 2009



Tucídides é o primeiro historiador no sentido em que usamos esse conceito nos dias de hoje. Autor de uma só obra, “História da Guerra do Peloponeso”, introduziu na literatura e no pensamento político uma concepção significativamente diferente da que foi praticada por Heródoto. Hoje escolhemos esse texto para podermos reflectir sobre a importância da decisão estratégica e das suas condicionantes. E no caso de Tucídides podemos dizer que as melhores análises modernas sobre a história política têm-se debruçado sobre este texto clássico fundamental.


 


O DOMÍNIO DOS FACTOS
Enquanto Heródoto procurou usar a magia das palavras e a força do estilo para seduzir os leitores, Tucídides ateve-se aos factos e à sua análise, explorando a dinâmica dos acontecimentos, purificando-os das interpretações mitológicas e da influência dos comentários e dos rumores. Ao explicar o seu método, torna claro que o fundamental deveria estar no cuidado na recolha de todos os documentos, de todos os testemunhos e na reunião de tudo o que contribuísse para a maior aproximação possível da verdade. E afirma mesmo: “vemos com que negligência a maior parte das pessoas procura a verdade e como acolhe as primeiras informações recebidas” (I, XX). Mais importante do que “agradar aos ouvidos” seria “servir a verdade”, daí que Tucídides afirme com clareza que “deve pensar-se que as minhas informações provêm das mais seguras fontes e apresentam uma certeza suficiente, considerando a sua antiguidade” (I, XXI). Aliás, um dos aspectos que é referido expressamente tem a ver com os discursos que são relatados, naturalmente difíceis de transcrever com exactidão. O historiador baseia-se nas palavras que ele mesmo ouviu e nos relatos que recolheu das diversas partes. “Como me pareceu que os oradores deviam falar para dizer o que estava mais a propósito, considerando as circunstâncias, esforcei-me por restituir, o mais exactamente possível, o pensamento completo das palavras exactamente pronunciadas” (I, XXII). No fundo, mais importante do que o primeiro relato ouvido ou do que a opinião do historiador, deveria haver uma grande preocupação de rigor, pelo que Tucídides ou se baseia naquilo que viu e de que foi testemunha ou no que sabe por informações tão exactas quanto possível. A ausência do maravilhoso pode tornar menos atraentes as descrições, mas permite um conhecimento dos acontecimentos para além das preocupações com a satisfação do momento. A escolha do tema relaciona-se com o facto de a guerra entre Atenas e Esparta ter sido o mais importante evento da história grega até à época do historiador. Por isso, ele começa por proceder a uma síntese da história grega até às guerras médicas, para poder explicitar quais as causas longínquas e imediatas que provocaram o conflito. O estilo é propositadamente sóbrio, uma vez que o fundamental seria fazer compreender os acontecimentos, as suas origens e os respectivos desenvolvimentos. Em vez de analisar os factos históricos relacionando-os com a intervenção dos deuses, o historiador procura as leis gerais que governam o mundo. E se fala dos deuses é para descrever as crenças do seu tempo, exprimindo que a fraqueza humana apenas pode ser superada através da razão – enquanto inteligência aplicada ao conhecimento das coisas. Para ter sucesso, qualquer acção deveria ser inteligente e ter consequência moral. Mas a imparcialidade não deveria excluir nem o amor à pátria nem as suas preferências políticas. Há, assim, um equilíbrio que Tucídides procura praticar de modo a não trair o dever para com a verdade. Deste modo, admira Péricles, mas o facto de aprovar o modo como ele exerce o poder não impede o seu sentido crítico em relação a muitos do que o seguem e à concepção democrática que defende. No entanto, a democracia torna-se aceitável quando exercida sob a orientação de um governante racional. Este é o entendimento de Tucídides que não pratica o panegírico, procurando, antes, realizar uma descrição e uma interpretação serenas dos acontecimentos. Na expressão consagrada de Jacqueline de Romilly, o método de Tucídides é o da “objectividade dirigida”. Para si, o rigor obriga a escolher os factos e a hierarquizá-los, com o objectivo de tornar clara para os leitores a realidade que está a descrever e a analisar.


QUEM FOI TUCÍDIDES?
Os elementos que possuímos sobre a sua vida são tardios e muitas vezes pouco seguros. Nasceu em 460 a. C., filho de aristocrata ateniense chamado Oloros, possuidor de minas de ouro na Trácia (Skapté-Hylé) e de florestas na Pangeia. A família era a de Cimon de Atenas (c. 507 a.C. – 449 a.C.) e descendia do famoso General Mitíades. Na infância teria assistido à leitura feita por Heródoto da sua obra, aquando de uns jogos olímpicos. Em 424 foi eleito estratega, tendo sido enviado à Trácia, para a zona de Thasos, onde teve a missão de manter a ordem na região e entre as suas populações. O ataque de Brasidas a Amphipolis obrigou Tucídides a ir em socorro do seu colega Euklès, sem no entanto poder evitar a queda da cidade. Apesar do esforço e do seu empenhamento, os atenienses julgá-lo-iam, condenando-o pelo insucesso militar. Não se sabe ao certo a sanção que lhe foi aplicada – se o exílio, se a pena capital. O que sabemos é que o historiador apenas regressou a Atenas em 404. De 423 a 404 a.C. viveu na Trácia, empenhado na recolha de elementos e na escrita da sua obra, viajando em Itália e na Sicília, o que lhe permitiu fazer descrições muito precisas dois cenários da guerra. Muito pouco se conhece, porém, em pormenor da vida de Tucídides. A maior parte dos biógrafos afirma ter tido morte violenta, entre 400 e 395 a.C., deixando a sua obra incompleta, sem ir além dos acontecimentos de 411. Quanto às suas ideias podemos retirá-las das suas análises. Era um realista e um moderado, demarcando-se a um tempo da demagogia e das concepções aristocráticas. Quanto às influências que o marcaram tem havido um grande consenso nas referências a Anaxágoras (c. 500-428 a.C.), a Antiphôn (c. 480-411 a.C.) a ao próprio Péricles (c. 495-429 a.C.). Referimo-nos ao período de formação de Tucídides (na década de 420 a.C.), altura em que a escola de Atenas atingiu o seu apogeu intelectual. Nota-se uma experiência política evidente do escritor, até pelo modo como aborda os jogos de poder e pela lucidez que ostenta. Saliente-se que a capacidade de antecipação é um dos pontos que mais fascinam o historiador na consideração dos principais actores dos acontecimentos que analisa. Como afirma Jacqueline de Romilly: “a previsão justa é aos olhos de Tucídides o maior mérito dos chefes, políticos e militares”.

A GUERRA DO PELOPONESO
Tendo começado em 431 a.C., a guerra só viria a terminar em 404 a.C., mas Tucídides apenas a descreve até 411. É difícil dizer qual o motivo exacto desse brusco termo, parecendo que o historiador teria já recolhido todos os materiais necessários à conclusão da obra. Um dos argumentos que tem sido aventado tem a ver com o facto de Xenofonte ter começado as “Helénicas” no ponto exacto em que termina a “História” de Tucídides. Por outro lado, o livro VIII foi concebido diferentemente dos livros anteriores, não tendo provavelmente havido tempo para aplicar o método anterior e para fazer uma redacção mais cuidada, em especial relativamente aos discursos. Se procedermos a uma rápida alusão aos temas dos oito livros que constituem a obra de Tucídides, verificamos que o livro I introduz a narrativa, falando do método, dos acontecimentos de Epidamne e de Potideia e dos preparativos da guerra. O livro II trata dos três primeiros anos do conflito e da peste de Atenas (431-428 a.C.). Os livros II, IV e V abrangem três períodos até à paz de Nicias (415 a.C.), respectivamente: (428-425 a.C.) do quarto ao sexto anos de guerra (com o saque de Melos); (425-422 a.C.) os anos marcados pela tomada pelos atenienses de Pylos e Shaktéria; e (422-415 a.C.) em torno da paz de Nicias. Por fim, os livros VI, VII e VIII correspondem a três momentos: (415-413 a.C.) primeira parte da expedição da Sicília até à chegada de Gylippos; (413) o desastre em terra e no mar dos atenienses na Sicília e (412-411 a.C.) o vigésimo e vigésimo primeiro ano da guerra, até ao regresso de Alcibíades. Mas, para se compreender a guerra do Peloponeso, temos de (lendo Tucídides) de nos reportar à ascensão e grandeza da talassocracia de Atenas, que obrigou Esparta a responder ao risco evidente de hegemonização ateniense – de que a liga de Delos era um prenúncio. Atenas contava com o domínio dos mares, Esparta com a superioridade em terra. O primeiro foi insuficiente e Esparta venceria. As palavras judiciosas de Péricles não foram, porém, ouvidas. E nada ficou na mesma depois do final desta fundamental guerra do Peloponeso…

                                                                       Guilherme d’Oliveira Martins


 

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