A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

“Eduardo Lourenço – Uma Ideia do Mundo” é o tema do número 171 da revista “Colóquio –Letras” (Maio – Agosto de 2009). Trata-se da amostra de um trabalho, que se revela indispensável, de selecção, tradução e anotação de textos realizados por João Nuno Morais Alçada no âmbito do projecto “Inventário e Catalogação do Acervo de Eduardo Lourenço” da responsabilidade do CNC, com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian.

A VIDA DOS LIVROS
De 19 a 26 de Julho de 2009



“Eduardo Lourenço – Uma Ideia do Mundo” é o tema do número 171 da revista “Colóquio –Letras” (Maio – Agosto de 2009). Trata-se da amostra de um trabalho, que se revela indispensável, de selecção, tradução e anotação de textos realizados por João Nuno Morais Alçada no âmbito do projecto “Inventário e Catalogação do Acervo de Eduardo Lourenço” da responsabilidade do CNC, com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian.



 
UM NÚMERO RECHEADO
Ao folhearmos esta “Colóquio – Letras” deparamo-nos com um conjunto fascinante e muito feliz de textos, a começar por dispersos e inéditos de Eduardo Lourenço (EL), com páginas diarísticas, podendo encontrar-se o surpreendente “O Livro da Alma ou a educação portuguesa” de Tristão Bernardo, um alter-ego do autor, “morto” subitamente em 1951 ou 1952, cuja existência e drama acompanhamos em dois textos (o outro é “Tristão ou o livro da alma”), que são duas tentativas de apresentação de um diário metafísico deste jovem autor, desaparecido de peste (“num tempo em que ninguém morre de peste. A não ser a peste de viver, como ele dizia”), por força da arte e do ofício de pensar ou de adiar fazê-lo. Como no romance de Tristão e Isolda é de tristeza que se fala (“et comme ainsi tu est venu sur terre par tristesse, tu auras nom Tristan”) e sobre ela reflecte o amigo do imaginário jovem desaparecido. “O nosso amigo foi uma destas vidas que passaram o tempo a adiar-se. Adiou as suas ideias, adiou o seu amor, adiou a sua política, as suas obras e, o que é mais grave, adiou o mesmo Deus. A categoria suprema da sua vida foi a recusa”. Mas, além de correspondência diversa (desde os históricos da “Colóquio” até Jorge Guillén, José-Augusto França, Eugénio de Andrade, Vergílio Ferreira, Eduardo Prado Coelho, Luciana Stegagno Picchio ou Mário Botas…), que se lê com muito gosto, descobrindo-se sempre o ensaísta que nunca esquece o seu ofício, à semelhança do que sempre aconteceu com Montaigne, que é a grande e constante referência de Lourenço, deparamo-nos com diversos textos importantes sobre Camões e o poder da literatura (Cardoso Bernardes), sobre a heterodoxia, a heterofonia e a heteronímia (P. Quillier), bem como sobre a cultura portuguesa (Roberto Vecchi, no doutoramento na Universidade Bolonha e Margarida Calafate Ribeiro, na inauguração da cátedra Eduardo Lourenço também na Alma Mater Studiorum). Isto, além de pequenos dossiês sobre as relações com Miguel Torga (a partir de um texto de Carlos Mendes de Sousa) e com Agustina Bessa-Luís, sobre a “Heterodoxia II (a partir de José Blanc de Portugal), sobre a “miragem brasileira, a partir de uma carta de Adolfo Casais Monteiro, onde se encontra o texto referencial sobre “Um Fernando Pessoa” de Agostinho da Silva (“o que em Pessoa oscila entre a realidade e a ilusão, e por isso invoca miticamente, é a evidência espiritual imediata de Agostinho da Silva”) ou alguns “estilhaços”, entre os quais um pequeno texto belísssimo sobre o filme “O Terceiro Homem” de Carol Read, com argumento de Graham Greene – “um encontro é uma decepção ou uma aventura. Depende das nossas mãos transformá-lo em estátua ou múmia. As coisas não nos devolvem em definitivo senão a própria imagem. Por isso mesmo pareceu a tantos tão diversos filmes. E na verdade os foi”.
PARA LER DETIDAMENTE
O número está organizado inteligentemente. Houve necessidade de fazer escolhas, por vezes dilacerantes, mas o resultado permite-nos perceber o manancial que serviu de base à escolha e que se anuncia como conjunto notável de uma obra que ainda exige um grande trabalho de publicação, para chegarmos à sua melhor compreensão. O contacto com Miguel Torga revela-se, aliás, fundamental para a consolidação da posição heterodoxa. E esse encontro de Coimbra (1947) e o movimento iniciático, de descida da Alta até à Livraria Atlântida, tem um sentido decisivo no percurso que o jovem pensador irá trilhar, desde a tertúlia da Central até aos encontros no consultório do Largo da Portagem. Torga simpatiza com a atitude do jovem e como que o adopta… E é muito curioso lermos a reflexão e o conselho do escritor e poeta de “A Criação do Mundo” sobre o modo mais adequado de protestar contra a invasão da Hungria (“o meu amigo queria um protesto que abrangesse uma só tirania; eu queria outro que abrangesse a todas. A razão é simples: a sua indignação irrompe da claridade dum país livre; a minha da negrura duma terra escravizada”. EL está a Montpellier e Torga mantém-se, como sempre, em Coimbra, atento aos acontecimentos e aos “aproveitamentos” nacionais. No encontro com Agustina, Lourenço descobre (a propósito de “Um Cão que Sonha”) que esta “é uma memória mais rica que a verdadeira memória, uma memória que sonha um passado de sonho para no-lo tornar sensível, inesgotável como um verdadeiro presente…”. E Agustina descobre em 1975 que a revolução foi um benefício: “Portugal era completamente um caso de sonambulismo; tudo o que acontecia era em sonhos”… No diálogo entre ambos, há a procura de chaves explicativas dos acontecimentos, das personalidades, para além das evidências, entre o paradoxo e o culto do aleatório: “Como Vitória era imperatriz de uma Índia de sonho, Agustina é a rainha do aleatório. Quando o aleatório impõe a sua necessidade, o deslumbramento nasce”.
UM DIÁLOGO IMPERDÍVEL
Mário Botas imaginou um ícone para Eduardo Lourenço. Acrescentou uma cara risonha do nosso querido ensaísta ao quadro clássico de D. Sebastião. O resultado é irónico, como irónico é o recorte de jornal em que o mesmo Botas compara EL a Salazar, na atitude corporal… No entanto, apesar de ser um filómita e um interrogador de mitos, Lourenço sempre se demarcou do sebastianismo sistémico, e aí seguiu de perto a tradição de Antero de Quental, afastando-se a um tempo de positivismos e de espiritualismos, mas sabendo aliar as diversas influência e compreender que o mundo apenas pode ser entendido se visto do lado da razão e das raízes e razões dos mitos, não para os seguirmos, mas para entendermos a força da criação poética, os limites da acção, das vontade e do pensamento. Na entrevista que Maria João Seixas faz a EL e vem publicada a abrir este volume da “Colóquio – Letras”, há diversas pistas que são lançadas e que merecem ser recordadas. “O poético é a capacidade de apreender a nossa relação com a natureza da maneira mais criadora possível e fazer como se, de algum modo, fôssemos nós mesmos os autores da própria criação”. Em contrapartida, porém, e isso aplica-se especialmente ao ensaísta, que é o prosador paradigmático: “o prosador tem de lidar com aquilo que é menos cantante, menos imediatamente sedutor, tem de elevar o que é comum, o que é quotidiano, e tem de transformar esse quotidiano em ouro, o que é mais duro do que começar imediatamente no ouro. Partir do ouro, é da natureza da poesia”. E o interrogador permanente do sagrado, seguindo a linhagem anteriana, diz terminantemente: “viver significa não podermos fazer outra coisa do que respirar, respirar o absoluto. Respirar o absoluto não quer dizer pôr a mão no absoluto, não quer dizer pôr o absoluto ao nosso serviço, porque o absoluto, por definição, não está ao nosso serviço”. E é neste mesmo sentido que EL escolhe com palavra da sua eleição o “fervor”. Mas que fervor? “O fervor é pensar que apesar de perdido, o paraíso continua a ser ainda aquilo de que nos lembramos, aquilo que permite que saiamos desta terra, onde aparecemos, sem ter o sentimento, ou a convicção, de que estivemos no inferno”. Sempre contraditório, sempre paradoxal, disposto a entrar pelos caminhos mais difíceis e inesperados, luminoso e nocturno, apolíneo e dionisíaco, mas sem passagens ciclotímicas pelos extremos, e sim com a procura das vivências contrastadas, capazes de fazer entender a complexidade do género humano. Talvez por isso mesmo interesse muito mais a Eduardo Lourenço, em vez do mito sebástico, o papel de Camões e de “Os Lusíadas” – “le livre qu’on ne peut refaire car c’est lui-même qui nous a faits tels qu’en nous mêmes nous continuons de nous rêver”. E daí partimos na cultura portuguesa (Garrett, Quental, Eça, Sérgio, Cortesão) para um modo diferente de pensar o mundo e de entender a sua complexidade e os contrastes. E são esses contrastes que fazem a vida na obra de Eduardo Lourenço, evitando as explicações únicas.


E oiça aqui as minhas crónicas na Renascença.
                                                                         Guilherme d’Oliveira Martins

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