A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

Eduardo Prado Coelho foi um ensaísta especial. Conhecendo bem as regras e a história do ensaísmo, procurou na sua escrita abrir novos horizontes. Em «o Cálculo das Sombras» (Asa, 1997) publica-se um texto fundamental: «O Ensaio em geral» (conferência no Centro Pompidou, em 1988) que merece leitura atual muito atenta.

A VIDA DOS LIVROS
de 3 a 9 de Dezembro de 2012



Eduardo Prado Coelho foi um ensaísta especial. Conhecendo bem as regras e a história do ensaísmo, procurou na sua escrita abrir novos horizontes. Em «o Cálculo das Sombras» (Asa, 1997) publica-se um texto fundamental: «O Ensaio em geral» (conferência no Centro Pompidou, em 1988) que merece leitura atual muito atenta.



EM TORNO DO ENSAIO
Sobre o ensaio, diz EPC, que «é o gosto lúdico da duplicação, da reflexividade, de criar uma espécie de vertigem, de horizonte infinito, em que sujeito e objeto, linguagem e metalinguagem, se acabam por dissolver num diálogo interminável de espelhos». Partindo de Sílvio Lima, o autor referencial de «Ensaio sobre a essência do ensaio» (de 1944), colocou dúvidas relativamente ao termo essência, que, de algum modo, limitaria o caráter do exercício ensaístico. Para o ensaio, no sentido de Sílvio Lima, haveria, antes de mais, a ideia de «exame» – como exigência, gosto, prova, peso e balança; mas, a partir da tradição subjetiva de Montaigne, EPC contrapõe ainda a aceção do «enxame» – nuvem de pássaros, proliferação ilimitada, jogo de espelhos. E é a segundo esse contraponto que vem à baila a imagem do pêndulo usada por Carlo Michelstaedter, instrumento sujeito a um movimento incessante, que o mesmo é dizer, a uma «cultura estética dominada pela oscilação retórica», parecendo a verdade fugir a cada momento, apesar e por causa da força da gravidade, tornando-se, paradoxalmente, o peso um impedimento para possuirmos vida. Contudo, como disse Robert Musil, o ensaio não tem caráter imperfeito ou incompleto, nem lhe falta rigor. O ensaio está entre a ciência e a arte, exigindo a forma e o método, o conhecimento e a compreensão. Nesse ponto, Habermas, do lado do exame, e Derrida confrontam-se. O exame racional e a desconstrução chocam-se e completam-se. E assim a crítica literária e a filosofia tornam-se mediadores entre a cultura e o mundo quotidiano. Para EPC, a intima relação da literatura, do cinema e da poesia conduz à exigência de compreensão da complexidade e da incerteza, demarcando-se o autor de «A Mecânica dos Fluidos» (1984) do ensaísmo tradicional. Foucault, Barthes, Lacan, Althusser, Derrida são referências tutelares, em ligação com a leitura atenta dos «mestres da suspeita», Marx, Nietzsche e Freud. E é a teoria que desde início preocupa EPC, dentro do espírito do tempo, logo em «Estruturalismo – Antologia de Textos teóricos» (Portugália, 1968). Foucault abre as citações da antologia: impõe-se a consideração de «la conscience eveillée et inquiète du savoir moderne». E Eduardo Lourenço é citado: «como a exigência heterodoxa supunha uma Cultura em estado de opressão maniqueísta, a metamorfose desta última em Jogo absoluto suprime pela mesma ocasião aquela exigência»… No fundo, há novos métodos, o registo utópico e distópico, a construção e a desconstrução – e sobretudo o tempo que se move, que leva à primazia do sentido crítico.


A CICLOTIMIA PORTUGUESA
E Portugal? «É um país ciclotímico. (…) Num dia acordamos felizes com a nossa imagem, noutro convencemo-nos que estamos nas ruas da amargura. É pouca a racionalidade. São múltiplos os círculos de afetos desvairados. No meio deste carrossel, vamos perdendo a capacidade de pensar e de agir, de fazer e de inventar» (Público, 31.12.2004). E o sentido crítico torna-se pedra angular. EPC distingue três tipos de críticos: o fetichista que se lança sobre o objeto, tentando capturá-lo; o melancólico, cultor da tragédia e do mito (como Eduardo Lourenço); e o que se pode designar com crítico-crítico, que Eduardo nitidamente assume. O gosto da descoberta de novos autores e pontos de vista domina a obra multifacetada. Fui testemunha disso quando comecei a falar de Michael Walzer e da noção de «justiça complexa», que EPC passou a seguir como muita atenção e a pedir-me novos elementos. Em coerência, afirma: «A minha ideia de Esquerda foi sempre estética (ou, por outras palavras, exigindo o privilégio de outra coisa em relação à evidência da máquina económica)». Torna-se, assim, necessário produzir as condições para que se compreenda o improvável, a «terceira margem do rio» (como no conto de Guimarães Rosa), «nua e violenta, como se fosse a memória exaltada do mar, do caos anterior às margens («Tudo o que não escrevi», I, Asa, 1992, pp. 65-66). Para EPC, as preferências orientam-se para as personalidades que escolhiam a racionalidade argumentativa em torno de problemas concretos (Pintasilgo, Constâncio, Roberto Carneiro etc.). O inconformismo, o sentido crítico, o sair da redoma, o perscrutar de caminhos novos são os esteios que o novo ensaísta segue.


EUROPA DESENCANTADA
Vejamos um exemplo de 1991. «Leio as primeiras páginas de “L’Europe Introuvable” de Eduardo Lourenço. Se bem entendo o avanço majestoso e ondulante destes textos magníficos, o ponto fulcral é: – a Europa só pode existir como Europa cultural; – a Europa cultural (ou a cultura europeia) é um espaço em que a cultura foi vivida como realidade autónoma; – a relação com essa realidade autónoma foi sempre feita num registo trágico; – donde a cultura europeia é uma cultura vivida como instância soberana que o sujeito europeu assume em termos de tragicidade (isto é, como consciência sempre dividida, dilacerada e infeliz)» (Idem, pp. 55-56)… A guerra do Golfo foi a demonstração da falta de uma Europa política e nos Estados Unidos encontramos o paradigma consumista e os «mecanismos cegos do mercado», que ignoram a «dimensão cultural da vida como demanda trágica de um sentido». EPC põe reservas a esta análise por um certo quadro religioso. Afinal, o crítico-crítico contrapõe ao crítico melancólico o registo de ironia e jogo (Alexandra Prado Coelho, num texto belíssimo no “Público”, 14.11.12, prefere jogo e desejo). E é muito curioso ver como, demarcando-se, EPC se aproxima de Lourenço, assumindo de algum modo uma «cultura trágica de outra maneira», lembre-se «O Retorno do Trágico» de Jean-Marie Domenach. Mas a Europa será um polo de transcendência? Lourenço pressupõe uma comunidade plural de destinos e valores, mas EPC prefere a valorização da contingência de Rorty – a partir do pluralismo e das diferenças. Trata-se de «extrair o ser da sensação», na expressão de Deleuze. Na contingência das palavras reside o sentido. E assim «a democracia não é o bom objeto, mas a difícil e desprendida aprendizagem do lugar vazio por onde desfilam, numa irónica parada, os objetos contingentes» (Idem, p. 57). Daí a paixão pelo universo Pessoa (presente no Botanique, em Bruxelas, na inesquecível Europália), pela complexidade, pela abertura, pelo inesperado. O ensaísmo de EPC identifica-se com o «gosto de gostar» de Clarice Lispector, não pode fechar-se em qualquer redoma, até porque, como nos disse, «o campo que eu escolho, sou eu que o construo». Sempre com a «vocação deambulatória do ensaio enquanto exercício de liberdade e tolerância, composição harmoniosa de exame e de enxame», recuperando «a sua mais profunda e apaixonante razão de ser». (p. 49).


Guilherme d’Oliveira Martins

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