A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

Os Catálogos da Biblioteca Nacional de Portugal têm-se singularizado pela sua qualidade. Tal é o caso agora de «Alfredo Margarido – Um Pensador Livre e Crítico», exposição comissariada por Isabel Castro Henriques, com coordenação de Fátima Lopes e Manuela Rêgo. Trata-se de um documento importante que apresenta ao público em geral e aos estudiosos sobre a lusofonia e as literaturas africanas de expressão portuguesa em especial o contributo crítico de um intelectual empenhado e de qualidade, como foi Alfredo Margarido.

A VIDA DOS LIVROS
de 7 a 13 de Maio de 2012



Os Catálogos da Biblioteca Nacional de Portugal têm-se singularizado pela sua qualidade. Tal é o caso agora de «Alfredo Margarido – Um Pensador Livre e Crítico», exposição comissariada por Isabel Castro Henriques, com coordenação de Fátima Lopes e Manuela Rêgo. Trata-se de um documento importante que apresenta ao público em geral e aos estudiosos sobre a lusofonia e as literaturas africanas de expressão portuguesa em especial o contributo crítico de um intelectual empenhado e de qualidade, como foi Alfredo Margarido.


 


UMA EXPOSIÇÃO OPORTUNA
A exposição organizada pela Biblioteca Nacional sobre Alfredo Margarido (1928-2010) homenageia «um pensador livre e crítico» e permite abrir horizontes sobre o tema da lusofonia. Personalidade multifacetada, conheceu muito bem África e pôde assumir uma reflexão para além dos diferentes lugares comuns de matizes múltiplos ou de quaisquer paternalismos. Nesse sentido, constitui uma referência fundamental para assumirmos, de forma desafogada, o «humanismo universalista», de que falou Jaime Cortesão, em termos abertos e inovadores, a partir de um movimento plural e centrífugo, entendendo a língua portuguesa como ponto de encontro de várias culturas. A sua personalidade libertária e inconformista, o seu labor incansável, a diversidade de temas e de interesses que cultivou constituem elementos fecundos que nos permitem ganhar novas dimensões da idiossincrasia lusófona sempre que lemos os seus textos e os seus ensaios.
Se nos ativermos ao «Dicionário de Autores de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa» do saudoso mestre Aldónio Gomes (nome que não pode ser esquecido, e cuja obra continua a exigir a maior atenção) com Fernanda Cavacas, Alfredo Margarido usou na sua extensa e profusa obra, além do seu próprio nome, pseudónimos como Lúcio Câmara, Manuel Kandiba e Paulo Saraiva, sendo inicialmente técnico agrícola e jornalista, e depois licenciado e doutorado em França. Expulso de Angola por motivos políticos, viveu muitos anos em Paris, tendo sido investigador, pensador, poeta, romancista, ensaísta e crítico literário. «É reconhecido como um dos históricos dos estudos literários africanos com Mário de Andrade e Manuel Ferreira». E como não lembrar Manuela Margarido, sua primeira mulher, figura essencial na lusofonia africana, que conheci pessoalmente na UNESCO, e que teve uma presença forte na ligação à cultura africana de Alfredo?


UM ESPÍRITO LIVRE
Eugénio Lisboa bem o definiu: «Era, como os melhores, um monte de contradições: um rezingão inteligente que disfarçava os seus afetos, um cultor da palavra acerada e perscrutadora que escondia, com pudor e alguma malícia, o seu talento de artista plástico, um erudito sólido que fazia, com desenvoltura, poesia e romance, um provocador profissional que amava o convívio e sabia cultivar as amizades, um professor que gostava de desarrumar a sabedoria estabelecida e convidava à irreverência fundamentada, em suma, um cavalheiro de opinião diferente, sempre preparado para nos contradizer, com um sorriso malicioso e uma voz mansa que amaciava o tumulto». Dificilmente se poderia dizer melhor. Estávamos diante de uma inquietude iluminante, de quem tudo lia e por tudo se interessava. E o catálogo da exposição, contando com uma extraordinária apresentação de Isabel Castro Henriques, ilustra bem essa faceta de desassossego. Trata-se, afinal, de um repositório tocante e exaustivo, onde podemos acompanhar um percurso extraordinário de quem foi «um dos pensadores mais lúcidos da nossa realidade» (Perfecto Cuadrado).
 
UMA VISITA ELOQUENTE
Visitei há dias a exposição da Biblioteca com o meu querido amigo Eduardo Lourenço. É sempre um fascínio ter esta companhia, depois de termos andado às voltas com o papel dos mitos na interpretação da História. Com uma atenção especial a todos os pormenores, foi exprimindo uma sincera admiração pela capacidade de compreensão e de argúcia de Alfredo Margarido, sempre comparando a evolução dos textos e da reflexão com a belíssima obra gráfica. Há uma rara sensibilidade manifestada nos desenhos expostos, o surrealismo é assumido com doçura e ironia, o colorido suave ilustra uma espécie de representação onírica da literatura – o que entusiasma Eduardo: aqui, os vários heterónimos pessoanos num turbilhão ou num caracol de cabeças; acolá Caeiro pastor de rebanhos, mais adiante Pessoa passeando sobre os telhados ou segurando um balão… Luciana Stegagno Picchio fala de «uma notável técnica de aguarelista», que aproveita «a lição surrealista, modalidade portuguesa de uma geração ilustrada por Alexandre O’Neill ou um Mário Cesariny».
 
SINGULARIDADE NA EXPRESSÃO ARTÍSTICA
Entre a descoberta dos textos, das referências, das pequenas e grandes audácias, aqueles desenhos entusiasmam o visitante. Eduardo Lourenço recorda o primeiro contacto, no já distante ano de 1953, através de «Poemas com Rosas». Depois lembra o surrealismo em Luanda, com Cruzeiro Seixas («o Margarido era muito sociável e eu preferia o sol e o mar, encontrar um estranho búzio, as noites e a gente jovem»). Perfecto Cuadrado fala da singularidade da expressão artística de Alfredo Margarido. «Lúcido, crítico e livre, poeta no olhar, no pensar e no dizer uma realidade que continua a precisar de uma profunda reabilitação desde os territórios concêntricos e sucessivos do moral, do ético, do político e do estético». E convém lembrar Teixeira de Pascoaes, que tanto entusiasmou o jovem A. Margarido – «a luz é cada vez mais luz». Eduardo Lourenço recorda a importância e o prestígio dos textos no «Diogène» (como «Incidences socio-economiques sur la poèsie noire d’expression portugaise» de 1962) – e vem à baila Marc Ferro a dizer: «Il avait la sagacité de Fernand Braudel, l’inventivité d’Eric Hobsbawm, la curiosité multiforme de Roland Barthes». Lá estão os «Cadernos de Circunstância», com Manuel Villaverde Cabral e Fernando Medeiros.
 
UMA LÍNGUA VIVA DOS SEUS FALANTES
Os textos têm uma rara pertinência, e ao vê-los num conjunto, percebemos que o autor manteve-se sempre atento aos novos fenómenos, sabendo que o desenvolvimento moderno precisa de autonomia e diálogo, de singularidade e reciprocidade. E Eduardo Lourenço aponta-me uma frase, que obriga a um sério repensar. Sinto que se coloca abertamente ao lado de Margarido: «A nossa modernidade, criada pelas independências africanas, obrigou o país a cortar uma parte substancial dos seus laços com o Atlântico, que foi sempre o Oceano das nossas grandes incursões, mesmo se o Índico não pode ser afastado desta reflexão (…). A invenção da lusofonia procura com algum desespero devolver-nos uma parte desse espaço (…). A maior parte dos missionários da lusofonia agem como se não tivéssemos atrás uma longa história de relações polémicas com aqueles que escolheram falar português». Este é um tema fulcral. E Eduardo Lourenço sente que ali estão as suas preocupações fundamentais: «A língua nasceu em Portugal e pertence aos portugueses. Não se consegue aceitar o princípio simples de que a língua pertence àqueles que a falam! Aceitemos a leitura crítica do passado, o que será sempre ocasião para impedir que alguns dos nossos melhores vícios se transformem em virtudes». É esse aguilhão da crítica que tem de funcionar, para tirar as lições dos erros e para fazer dos mitos motivo de compreensão.


Guilherme d’Oliveira Martins

Subscreva a nossa newsletter