A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

«O Livro do Desassossego» de Bernardo Soares / Fernando Pessoa (edição de Richard Zenith, Assírio e Alvim, 1998) é hoje uma das obras fundamentais da literatura portuguesa. Fruto de uma pesquisa aturada na arca do poeta (arca que pedimos seja devolvida ao domínio público) por uma equipa de investigadores excepcionais, o livro deve ser lido e ouvido atentamente. E o cineasta João Botelho bem o compreendeu, legando-nos uma peça que é digna do livro fundamental a que se refere.

A VIDA DOS LIVROS 
de 1 a 7 de Agosto de 2011


«O Livro do Desassossego» de Bernardo Soares / Fernando Pessoa (edição de Richard Zenith, Assírio e Alvim, 1998) é hoje uma das obras fundamentais da literatura portuguesa. Fruto de uma pesquisa aturada na arca do poeta (arca que pedimos seja devolvida ao domínio público) por uma equipa de investigadores excepcionais, o livro deve ser lido e ouvido atentamente. E o cineasta João Botelho bem o compreendeu, legando-nos uma peça que é digna do livro fundamental a que se refere. 



A MINHA PÁTRIA É A LÍNGUA
«Não tenho sentimento nenhum político ou social» (disse Bernardo Soares). A passagem é bem conhecida. Ouvimos com devoção o «desassossego». «Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa». Mas o autor acrescenta, quase ironicamente: «Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em quem se bata, o ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse. Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa, vista e ouvida». Que nos diz Pessoa afinal? Que a expressão da língua tem a ver com a sua humanidade. A comunicação existe para definir a vida das pessoas e da sociedade. Mais do que qualquer circunstância política ou social, a cultura afirma-se no largo prazo – e a nossa relação com a palavra e a língua é fundamental para definir quem somos. A língua tem valor significativo. «A palavra é completa, vista e ouvida». E Bernardo Soares joga com essa relação, inserindo-a na própria vida, Aí está o sinal da cultura que transforma a natureza. E o certo é que em cada palavra há sempre uma longa história: a origem etimológica, a evolução semântica, a ligação às coisas e loisas da vida comum, o paradoxo dos sentidos (que leva «nunc» a ser agora e a tornar-se nunca), a estética da representação gráfica (que levava Pessoa a recusar abismo sem ípsilon), a identificação do mundo e das pessoas e, no fundo, a capacidade de nos fazermos entender e comunicar.

O GOSTO DE DIZER E PALAVRAR
Com uma notável intuição, o poeta define a sua pátria com ironia e certeza, e refere-a ao respeito das palavras e das ideias, que com elas se constroem. Por isso, não acusa os ignorantes, mas sim o resultado da ignorância, exigindo o respeito pela expressão rigorosa da palavra e da cultura, como transmissão da humanidade na vivência do tempo. E ouvimo-lo: «Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, seres visíveis, sensualidades incorporadas». E estremecia se diziam bem, se sabiam dizer! A expressão, a voz e a ênfase mudam tudo. E, ao ouvir, tremia «como um ramo ao vento num delírio passivo de coisa movida». Afinal, não basta a ligação formal entre língua e pátria. Há o corpo e a terra, a voz e o rosto. É preciso entender que o que está em causa é um dever, uma responsabilidade para com a palavra que recebemos e que legamos. É do «património imaterial» por excelência que falamos, que se confunde com a identificação das coisas e a expressão dos sentimentos – como o gosto do cozido ou da bôla, do queijo e da canja, como o cantar dos alcatruzes ou a toada das camponesas, como o modo de vindimar as uvas e de varejar as amêndoas e os figos. Que é o património senão essa comunhão entre pedras e gentes, entre costumes e ambientes, ontem e hoje, recebendo e recriando? Diria Pedro Homem de Melo: «A Pátria, realidade, / vive em nós, porque nós vivemos». E Almada Negreiros, de modo desabrido: «Ainda nenhum português realizou o verdadeiro valor da língua portuguesa (…) porque Portugal, a dormir desde Camões, ainda não sabe o verdadeiro significado das palavras».

O IMPERADOR DA LÍNGUA PORTUGUESA
É curioso que Bernardo Soares fale emocionadamente de Vieira («Este, que teve a fama e à glória tem, / Imperador da língua portuguesa, / Foi-nos um céu também»). Trata-se do símbolo da maturidade da língua, exemplo do respeito sagrado pela palavra. E que será hoje o misterioso Quinto Império? Decerto nada que tenha a ver com poderes temporais ou com divisões blindadas. Decerto nada que tenha soluções imediatas para os problemas da dívida soberana e para a falência das economias de casino. E temos de estar alerta relativamente aos sentimentalismos que amolecem a vontade. Razão e sentimento encontram-se. O respeito sagrado pela palavra obriga a cultivarmos a dignidade do ser e do querer, a capacidade de encontrarmos os caminhos de emancipação e os antídotos contra a descrença e a autoflagelação. Vieira, falando do «nosso» Santo António de Lisboa, dizia: «não tem logo quem se queixar Portugal. Se António não nascera para o Sol, tivera a sepultura onde teve nascimento; mas como Deus o criou para a luz do mundo, nascer em uma parte e sepultar-se na outra é obrigação do Sol» (1670). A relação com a sociedade global não pode deixar-nos. Como no diálogo entre Todo o Mundo e Ninguém, de Mestre Gil (no Auto da Lusitânia), precisamos de fincar os pés na terra com a humildade necessária para podermos realizar – «semeia o agricultor em pouca terra o que depois há-de dispor em muita»… O Império de Vieira e de Pessoa é hoje império do espírito, da língua e da palavra, partindo da ideia profética de comunhão universal dos povos cristãos para o desaparecimento universal da guerra e a instauração da paz universal – considerando a razão como limite do poder, temperando virtude teológica e prudência política. Utopia? Decerto que sim, mas se hoje falamos de respeito da palavra, falamos de factores democráticos, em que insiste Jaime Cortesão, no seu humanismo universalista.

NÃO ESTAMOS SÓS
A cultura portuguesa não está só. Liga-se às outras culturas da língua portuguesa e tem de ser entendida como uma cultura multímoda, cujo caminho tem de coordenar e articular os objectivos heterogéneos do mundo da fala portuguesa. Lembrando o dilema fixação e transporte, temos de entender que o nosso défice fundamental é ainda de aprendizagem e de capacidade inovadora. A língua e a cultura têm valor que importa aproveitar. A internacionalização da língua portuguesa é um ponto de especial importância. Temos de afirmar que a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) ainda é muito modesta no seu programa de valorização da língua como elemento fundamental de um impulso moderno de inovação e de criatividade. Há um largo espaço para o desenvolvimento da cooperação internacional relativamente às culturas de língua portuguesa, nos domínios académico, científico, formativo e universitário, que tem de ser aproveitado – não apenas na lusofonia, mas atraindo novas atenções nos principais centros académicos e de cultura. E impõe-se ainda incentivar a mobilidade de estudantes e professores de modo a que haja um maior diálogo entre culturas, num contexto multilinguístico, e um melhor conhecimento das culturas da língua portuguesa. Como afirmava Diogo Vasconcelos, que inesperadamente nos deixou, quando muito dele se esperaria: «a Europa precisa de mobilizar a criatividade colectiva para melhorar a sua capacidade de inovação… (…) É nos momentos de crise que podemos testar e criar novas soluções. São tempos para sermos frugais nos custos, mas exuberantes na criação de novos futuros possíveis».


Guilherme d’Oliveira Martins

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