A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

Acaba de ser publicado “Heritage and Beyond” (Council of Europe, Strasbourg, 2009) sobre a nova Convenção-Quadro do Conselho da Europa sobre o Valor do Património Cultural na Sociedade Contemporânea (a Convenção de Faro de 27 de Outubro de 2005). Trata-se de um repositório muito circunstanciado e fundamental sobre o tema, que foi desenvolvido no Colóquio Internacional que se realizou em Lisboa a 20 de Novembro sob os auspícios do Conselho da Europa (com o CNC e o IGESPAR), oportunidade excepcional para olharmos as políticas públicas da cultura à luz da modernidade, tendo connosco os melhores especialistas da actualidade sobre a matéria. O património cultural é uma realidade viva. A História deixa de ser pertença de alguns, é uma encruzilhada que implica sempre a humanidade toda. E se os acontecimentos fazem as identidades, as identidades devem favorecer o novo entendimento das fronteiras, como linhas de encontro e de aproximação, muito mais do que de divisão e separação. E não se pense que falamos de abstracções. Não, falamos só de fronteiras que compreendam o conhecimento e os conflitos, mas que também regulem permanentemente esses conflitos na perspectiva de uma cultura de paz.

A VIDA DOS LIVROS
de 23 a 29 de Novembro de 2009


Acaba de ser publicado “Heritage and Beyond” (Council of Europe, Strasbourg, 2009) sobre a nova Convenção-Quadro do Conselho da Europa sobre o Valor do Património Cultural na Sociedade Contemporânea (a Convenção de Faro de 27 de Outubro de 2005). Trata-se de um repositório muito circunstanciado e fundamental sobre o tema, que foi desenvolvido no Colóquio Internacional que se realizou em Lisboa a 20 de Novembro sob os auspícios do Conselho da Europa (com o CNC e o IGESPAR), oportunidade excepcional para olharmos as políticas públicas da cultura à luz da modernidade, tendo connosco os melhores especialistas da actualidade sobre a matéria. O património cultural é uma realidade viva. A História deixa de ser pertença de alguns, é uma encruzilhada que implica sempre a humanidade toda. E se os acontecimentos fazem as identidades, as identidades devem favorecer o novo entendimento das fronteiras, como linhas de encontro e de aproximação, muito mais do que de divisão e separação. E não se pense que falamos de abstracções. Não, falamos só de fronteiras que compreendam o conhecimento e os conflitos, mas que também regulem permanentemente esses conflitos na perspectiva de uma cultura de paz.


 
Sir Winston Churchill presidiu ao lançamento do Conselho da Europa em 1949.


PATRIMÓNIO E MEMÓRIA
O património é um conjunto de recursos herdados do passado, que não se resumem a uma visão retrospectiva do mundo. É reflexo e expressão dos valores, crenças, saberes e tradições. Faz parte de um movimento incessante que atravessa o tempo, independentemente do regime da propriedade dos bens, ou de uma perspectiva apenas material. Pedras vivas e pedras mortas, herança e criação – eis o que temos de considerar como permanente evolução. Afinal, há sempre uma ligação entre as pessoas e os lugares, entendendo-se a coesão como um facto social e territorial, mas também como algo de intrinsecamente humano. Pessoa e comunidade, eis os factores por excelência da cultura. E uma comunidade cultural “é composta por pessoas que valorizam determinados aspectos do Património cultural, que desejam, através da iniciativa pública, manter e transmitir às gerações futuras”. Não uma comunidade fechada, mas aberta. Eis o que diz a Convenção. Não se trata de ver as comunidades patrimoniais como factores de identidade encerrados sobre si, mas de considerá-las como grupos vivos de gente que faz da criação a sua capacidade de ligar o passado e a espera do futuro. Não é possível reconhecer o direito ao Património cultural sem o ligar ao direito de participar na vida cultural. Daí a necessidade de reconhecer a responsabilidade individual e colectiva perante o património cultural recebido das gerações passadas. Preservar o património e usá-lo de modo sustentável está, assim, ligado ao desenvolvimento humano e à qualidade de vida, tornando-se um elemento de paz e de democracia, de desenvolvimento sustentável e de promoção da diversidade cultural. Quando falamos da Europa e da construção de uma solidariedade aberta, assente na cultura, estamos, afinal, a pensar não numa qualquer estrutura burocrática, mas numa realidade baseada nas pessoas, na dignidade, na liberdade, na igualdade e no respeito. Património comum da Europa tem de se tornar, deste modo, um denominador comum, um elemento de reconhecimento mútuo, que envolva “todas as formas de Património cultural (…), que no seu conjunto constituam uma fonte partilhada de memória, compreensão, identidade, coesão e criatividade”, mas também que abranja os factores imateriais, capazes de ligar as pessoas e as comunidades – “os ideais, os princípios e os valores resultantes da experiência adquirida com progressos e conflitos passados, que favoreçam o desenvolvimento de uma sociedade pacífica e estável, baseada no respeito dos direitos do homem, da democracia e do Estado de direito”.


DIREITOS E RESPONSABILIDADES
A esta luz temos de assumir direitos e responsabilidades. Cada pessoa tem o direito de beneficiar do património cultural e de contribuir para o seu enriquecimento. Cada um tem a responsabilidade de respeitar o património próprio e dos outros, numa perspectiva de salvaguarda do bem comum. Daí os compromissos: de reconhecer o interesse público ligado ao património; de valorizá-lo através da sua identificação, estudo, interpretação, protecção, conservação e apresentação; de assegurar a existência de medidas legislativas para o exercício do direito ao património cultural; de favorecer um ambiente económico e social adequado a estas preocupações e finalidades; de promover a protecção do património como elemento central do desenvolvimento sustentável, da diversidade cultural e criação contemporânea; de reconhecer o valor do património, independentemente da sua origem ou pertença; e de formular estratégias integradas com estes objectivos. Não estamos, pois, perante formulações desenraizadas. Estamos diante de responsabilidades que não se limitam a conceber o património como referência do passado, mas como elemento de futuro, capaz de ligar a herança recebida e o valor acrescentado legado às gerações que nos sucederão. No fundo, não poderemos responder às solicitações das gerações dos nossos netos com as audácias de nossos avós. Daí a importância de um diálogo, que envolva a reflexão sobre a ética e sobre os métodos de apresentação do património cultural, com respeito pela diversidade de interpretações. Mas importa ainda estabelecer uma conciliação, para que haja equidade entre os valores contraditórios assumidos pelas diferentes comunidades. Urge aumentar o conhecimento, de modo a favorecer a coexistência pacífica, a confiança e a compreensão mútua, tendentes à prevenção de conflitos. Daí a necessária articulação com a educação, como processo permanente, de formação ao longo da via, mas também com a ciência e a comunicação.


COMPREENDER AS DIFERENÇAS
A compreensão das diferenças e do lugar do outro, no tempo e na História, exige conhecimento, aprendizagem e consciência da necessidade de enriquecer os processos de desenvolvimento económico, político, social e cultural, bem como o ordenamento do território. Mas obriga ainda à abordagem integrada e equilibrada das políticas relativas à diversidade cultural, biológica, geológica e paisagística, o reforço a coesão social e a responsabilidade partilhada, bem como a promoção activa da qualidade ambiental. Eis por que a utilização sustentável do património entra na ordem do dia, em nome do respeito da integridade, de modo que a adaptação compreenda os valores culturais, definindo e promovendo gestão e manutenção adequadas, velando por uma regulamentação técnica inteligente da conservação e promovendo a utilização de materiais, técnicas e aptidões tradicionais, explorando as potencialidade para aplicações contemporâneas e assegurando uma elevada qualidade nas intervenções, através de sistemas de qualificação e acreditação do melhor profissionalismo. O valor social do património exige o aumento da informação sobre as potencialidades económicas da sua utilização. As políticas de desenvolvimento terão de considerar o património. Por isso, importa organizar as responsabilidades públicas, promovendo uma abordagem integrada e bem informada das autoridades públicas; desenvolvendo os quadros jurídicos, financeiros e profissionais necessários, bem como os métodos inovadores para a cooperação entre autoridades públicas e privadas, respeitando e encorajando as iniciativas voluntárias e apoiando as organizações não governamentais que defendam o interesse público. Eis porque deve encorajar-se a participação activa das pessoas na identificação, estudo, interpretação, protecção e conservação do património, assim como na reflexão e debates públicos sobre as oportunidades e os desafios que se apresentam.


UM VALOR INSUBSTITUÍVEL
O valor atribuído ao património pelas diferentes comunidades patrimoniais deve ser considerado, reconhecendo-se o papel das organizações não lucrativas, como parceiros e agentes críticos. E como não colocar a dimensão patrimonial na escola, como meio de acesso a outros campos do conhecimento? Como não dar especial atenção à formação profissional? Como não favorecer a investigação interdisciplinar? No tempo da sociedade da informação, urge incentivar a qualidade dos conteúdos, garantir a diversidade de línguas e culturas, combater o tráfico ilícito de bens culturais, suprimir os obstáculos de acesso à informação relativa ao património cultural, em especial para fins pedagógicos, protegendo-se especialmente os direitos de propriedade intelectual. Compreende-se a importância de um sistema de acompanhamento e cooperação, mantendo, desenvolvendo e armazenando os dados num sistema partilhado de informação, acessível, de modo a facilitar a avaliação do modo como é dado cumprimento aos compromissos decorrentes da Convenção. Por se tratar de uma Convenção de enquadramento e não de um instrumento de obrigações directas, do que se trata é de ter consequências com vista a adoptar os novos desígnios ligados à preservação do património, da herança e da memória. Daí o necessário empenhamento dos Estados membros do Conselho da Europa, tornando-se necessário mobilizar os países que ainda não assinaram e ratificaram o novo instrumento de modo que a nova Convenção entre em efectividade. As políticas públicas da cultura deixam de separar o património cultural e a criação contemporânea. Património, herança e memória tornam-se, assim, factores da cultura como criação. Somos porque queremos e porque queremos saber donde vimos e para onde vamos. A memória viva anima-nos e lança-nos o desafio exigente de sermos mediadores entre gerações. A Convenção de Faro é um sinal de esperança, mas também um estímulo forte – para que a cultura, a educação e a ciência se tornem horizontes de desenvolvimento humano e de dignidade, de liberdade e de igualdade, de autonomia e de diferença, de responsabilidade e de justiça.



Guilherme d’Oliveira Martins


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