A Vida dos Livros

“A Pessoa e o Sagrado”, de Simone Weil

A obra de 1943, acaba de ser publicada pela editora Guerra e Paz. A Moraes encomendou inicialmente a M.S. Lourenço esta tradução, que não se concretizaria, não por discordâncias internas, mas por cautelas teológicas…

ATRAÍDOS PELA HETERODOXIA
João Bénard da Costa lembrava que foi nos anos 50, em França e Inglaterra que começou a fama de Simone Weil (1909-1943), graças essencialmente a Graham Greene. «Heterodoxa politicamente, heterodoxa teologicamente, heterodoxa filosoficamente, creio que foi a confluência entre “a truer liberty” e a “silent question”, a que se referiu Martin Buber, que suscitaram a paixão de alguns em Portugal, nos idos de 50 ou desde os idos de 50 até hoje». E neste sentido convém lembrar o início de um importante capítulo de “A Gravidade e a Graça”. Aí Weil diz o que dela foi mais citado por João Bénard ao longo da vida e que se transcreve, na tradução de M.S. Lourenço: “Estou certa de que não existe Deus no sentido em que estou certa de que nada de real se assemelha àquilo que eu concebo quando pronuncio esse nome. Mas aquilo que eu não posso conceber não é uma ilusão”. Senão vejamos: «A palavra pessoa (…) é muitas vezes aplicada a Deus» – diz Simone Weil. «Mas na passagem em que Cristo propõe Deus mesmo, aos homens como modelo de uma perfeição que se lhes ordena que atinjam, não se junta apenas a imagem de uma pessoa, junta-se sobretudo a de uma ordem impessoal: “Amai os vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem; para que sejais filhos do vosso Pai que está nos céus, porque faz que o seu sol se levante sobre maus e bons, e a chuva desça sobre justos e injustos (Mt., 5, 44-45). Esta ordem impessoal e divina do universo tem entre nós a justiça, a verdade, a beleza por imagem. Nada de inferior a estas coisas é digno de servir de inspiração para os homens que aceitam morrer. Acima das instituições destinadas a proteger o direito, as pessoas, as liberdades democráticas, é preciso inventar outras destinadas a discernir e a abolir tudo aquilo que, na vida contemporânea, esmaga as almas sob a injustiça, a mentira e a fealdade». Esta afirmação encontra-se na obra “A Pessoa e o Sagrado”, de 1943, que acaba de ser publicada pela editora Guerra e Paz. E o livro tem de ser motivo para uma séria reflexão. A noção de pessoa humana é aqui referida numa aceção complexa, algo diferente daquilo a que estamos habituados. 

A PESSOA E O SAGRADO
Se a palavra pessoa vem do grego “prosopon”, que significa a máscara do teatro que identifica as personagens, a verdade é que se trata de tomarmos consciência das diferenças e de compreendermos quem somos e o que nos distingue dos outros. A vida humana corresponde a duas facetas: a nossa inserção na realidade palpável que nos rodeia e a consideração do que está para além dos nossos limites. Mas somos gente de carne e osso, que compreende que nem tudo o que vemos tem explicação. Daí a importância de ligarmos a pessoa e o sagrado. E Simone Weil lembra um estranho episódio que a marcou profundamente, em 1935 de visita a Portugal. Na Póvoa de Varzim, em 1935, assistiu a uma procissão, a um cortejo de mulheres, viúvas de pescadores, vestidas de negro, em memória de seus maridos, mortos pela inclemência do mar. Os cânticos eram de uma tristeza lancinante, mas profundamente tocantes. “Foi aí que tive, subitamente, a certeza de que o cristianismo é a religião dos escravos, a religião a que os escravos, ou eu ou os outros, se não podem recusar”. E perante esta consideração Simone Weil, num assomo místico supremo, refere que “Cristo, ele mesmo, desceu e tomou-me”. E assim somos levados a recordar Santa Teresa de Ávila e S. João da Cruz – entendendo que, como ato místico, a bondade se revela como um ato de renúncia ao egoísmo e ao poder. E o caráter sagrado da pessoa humana é motivo de reflexão, porque o sagrado é aquilo que, num ser humano, é impessoal. Mas não se pense que a dignidade humana perde importância. Não, é da pobreza em espírito que falamos, de desprendimento, de disponibilidade plena, como na primeira bem-aventurança. Daí a citação de S. Mateus e a contraposição entre o pessoal e o impessoal. O impessoal liga-nos ao essencial, ao que permanece, ao que nos leva ao compromisso e ao encontro com o próximo. E eis que a pessoa humana se torna um ponto de encontro entre o quotidiano, o imediato e o fraterno e o reflexo que projeta a eternidade no dia a dia. Se Emmanuel Mounier fala do compromisso e do acontecimento como nosso mestre interior, aproxima-se quase paradoxalmente da preocupação de Simone Weil. E George Steiner recorda que “a atenção é a forma mais rara e mais pura de generosidade” – daí a importância da complementaridade entre as duas perspetivas aparentemente distantes, da pessoa espiritualmente comprometida e da pessoa lidando com a consciência dos limites e capaz de lidar com o sagrado na distância e na interrogação. 

PEREGRINAÇÃO INTERIOR
“As relações entre a coletividade e a pessoa devem ser estabelecidas com o único propósito de afastar o que é suscetível de impedir o crescimento e a germinação misteriosa da parte impessoal da alma. Por isso mesmo, é preciso, por um lado, que à volta de cada pessoa haja espaço, livre disposição do tempo, possibilidades para a passagem a níveis de atenção cada vez mais elevados, solidão, silêncio. É preciso, ao mesmo tempo, que essa pessoa se sinta abrigada, para que o desespero não a obrigue a fundir-se no coletivo”.  O amor cristão obriga assim à compreensão da complementaridade entre o pessoal e o impessoal – entre o impulso para agir e a necessidade de refletir, de pensar e de ser. Eis porque a pessoa humana é permanente peregrina do sagrado.

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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