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A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA

São aqui publicadas semanalmente as crónicas de João Bénard da Costa no jornal “Público”. Esta semana: O GRISÚ E OS CANIBAIS (I)

O GRISÚ E OS CANIBAIS (I)


por João Bénard da Costa


1. Por maior que seja o meu gosto por efemérides, juro à fé de quem sou que não me apanham a discutir os méritos ou deméritos relativos de Sartre e de Aron. Para esse peditório já dei e até julgo que generosamente. Voltar a ele, a pretexto de centenários, nem com luvas de amianto. Embora não resista a divertir-me com títulos como “o intelectual dos intelectuais” ou “o homem que nunca se enganou”. Cala-te boca… Pelo contrário, Júlio Verne puxa-me o pé e puxa-me mesmo por aí acima de qualquer deles. Também é verdade que, no caso dele, se não comemoram berços mas sepulcros, pois que o homem, se fosse vivo, (Aquário como eu, nascido no dia seguinte ao dia dos meus anos) contaria 177 anos bem contados. 77 tinha ele quando morreu, em Amiens, a 24 de Março, ainda Sartre nem nascido era e contava Aron apenas dez dias.


2. Antes de me ir à memória, uma divagaçãozinha gramatical sobre mistérios da língua portuguesa. Tal como nunca ninguém me conseguiu explicar porque bulas a proposição a se contrai ou descontrai do artigo dos artigos definidos a ou o em nomes de povoações ou de países, também me é identicamente misteriosa a razão ou razões por que se “aportuguesam” alguns nomes próprios estrangeiros, conservando-se no original a maioria deles. Dou exemplos, para ser claro. Porque é que se diz “ir a Cascais” e “ir ao Barreiro”, ou “ir a França” e “ir ao Japão”? Depende das consoantes por que começa o substantivo próprio? Não depende nada, já que igualmente se diz “ir à Finlândia” e “ir a Java”, “ir ao Cadaval” ou “ir a Braga”. Também nada tem que ver com vogais no início do substantivo. Diz-se “ir à América”, mas ninguém diz “ir à Almada”, diz-se “ir a Évora” mas nunca ouvi dizer “ir a Estónia”. Pura e simplesmente, não há regra ou eu nunca conheci José Pedro Machado que ma explicasse. Mas dá que pensar que digamos todas da mesma maneira ou, quando alguém troque (por exemplo: “ir à Espanha” ou “ir à França”) que logo lhe identifiquemos a condição social, já que só o “povo” aglutina assim em vez de assado.
À excepção de alguns puristas, sobretudo do século XIX ou da primeira metade do século XX, não é de bom tom, em português, “aportuguesar” nomes de gente célebre. Não me estou a ouvir, nem estou a ouvir ninguém que conheça, a citar Honorato de Balzac, Henrique Stendhal, Guilherme Shakespeare, Luís de Beethoven, José Verdi, João Bellini, Marcos Rothko ou Frederico Murnau. Mas sei que faço figura de pedante se disser Michelangelo em vez de Miguel Ângelo, Raffaello em vez de Rafael, Victor Hugo (com acento no o de Victor e no o de Hugo) em vez de Victor Hugo, como se estivesse a falar do matemático. Pior ainda (muito pior) se estiver a desfiar nomes de reis. Louis XIV, Henry VIII ou Wilhelm II, não se espera ouvir nem da boca do mais pintado. Por que sim ou por que não quem saiba que mo explique, que eu só sei responder como se responde aos “porquês” das crianças: “por que sim” e está tudo dito sem se dizer nada.
Tanta conversa para quê? Para observar que, além do autor de Les Misérables (e, neste caso, era preferível escrever Os Miseráveis) Júlio Verne é o único escritor do século XIX a que raríssimos portugueses chamam Jules Verne. A imensa popularidade tem que ver com isso, no caso de Hugo como no caso de Verne? É bem possível. Eles foram dos pouquíssimos que foram quase integralmente traduzidos no seu tempo e lidos por portugueses que não sabiam palavra de francês, coisa que no século XIX, e até cerca de 1960, era sinal de incultura grassa. A “sociologia cultural”, embora não explique Miguel Ângelo ou Rafael, pode explicar o Júlio Verne, que se pegou aos espíritos cultivados por contágio dos baixíssimos ou dos pré-adolescentes que em tempos idos o liam.


3. Júlio Verne, assim o conheci eu também, entre os meus 8 e os meus 12 anos, mais coisa menos coisa. Em casa dos meus avós, como em casa dos meus pais, havia prateleiras de estantes cheias, com as edições que começaram por ser de David Corazzi, subnominadas “imprensa horas românticas”, e passaram depois para a Bertrand (Aillaud e Bertrand), mantendo-se idênticos o formato, a encadernação, o encarnado (às vezes o verde) e as gravuras da capa: uma bananeira com uma serpente enroscada no caule; um leão; um navio naufragado com um vago vulcão ao fundo; e um balão pelos ares. Para além do título da obra, lia-se em maiúsculas itálicas, a quase toda a altura, a expressão Viagens Maravilhosas.
Por uma dessas edições (de 1888 – mas já era a terceira) conto eu trinta e dois volumes já editados nesse ano em português, sendo que vários deles eram duplos ou triplos (A Aventura do Capitão Hatteras, Os Filhos do Capitão Grant, Vinte Mil Léguas Submarinas, A Ilha Mysteriosa, Miguel Strogoff, O Paiz dos Pelles, Heitor Servadac, Um Heroe de Quinze Annos, A Casa a Vapor, Keraban o Cabeçudo, Mathias Sandorf, Norte Contra Sul) e um (As Grandes Viagens e os Grandes Viajantes) era quíntuplo, o que, bem feitas as contas, perfaz quarenta e oito livros, que haviam de chegar aos setenta e dois, à data da morte do escritor. A grafia usada era o esplêndido português anterior ao malfadado acordo de 1911, em que se escrevia A Esphinge dos Gelos e Luctas de Marinheiro, tanto na Rua Garrett em Lisboa como na Rua do Ouvidor no Rio de Janeiro. Esses livros, esse encarnado, essa ortographia, essas figuras da capa, mergulhavam-me em tal êxtase, que me consolava bem de não me deixarem tocar nas luxuosas edições da Hetzel, com gravuras de Neuville, Férat, Laplante ou Doré, que havia em casa do meu Avô Bénard, no original. Numa delas, escreveu o meu Avô a lápis: “Donné par mon père le 27 Juin 1880”. Era o dia dos anos dele, 11 no caso em questão, que é o de Vingt Mille Lieues Sous Les Mers, que tivera primeira edição em 1870. Só 71 anos depois, a 1 de Maio de 1951, passaram tais livros à minha posse, oferecidos pela minha Avó. O meu Avô leu Verne em 1880, como o meu Pai o leu em 1907 e eu o li em 1945. Três gerações educadas a Verne, mas já não juro pela quarta, pois que, apesar dos meus esforços, em 1970 ou durante essa década, os meus filhos já não devem ter terminado nenhum dos romances dele. Verne durou de 1860 a 1960, pelo menos como “leitura global”. Raros serão hoje os maiores de 50 anos que entraram na adolescência guiados pelos filhos do Capitão Grant ou reencontraram o Capitão Nemo na ilha misteriosa. “Chamaste-me Capitão Nemo?” A mim chamou-me (e de que maneira!) naquele escritório da Rua do Jardim do Tabaco, que ficava logo à direita da porta da entrada e onde uma escura livreira de mogno guardava as viagens maravilhosas que me levaram aos pólos e ao equador, à lua e ao fundo dos mares, à estrela do sul e ao centro da terra.


4. Mas a minha introdução a Verne não foi escrita, foi oral. Tinha eu 9 anos e andava no Lar Educativo João de Deus. Uma das netas do poeta, que era minha professora – Maria da Luz de Deus Ramos que, depois de casada, já fora desse tempo, se chamou Maria da Luz Ponces de Carvalho, a Luzinha como então todos lhe chamávamos – ocupava parte da aula da tarde a ler-nos Verne. O primeiro livro que assim nos leu foi As Índias Negras, que se situava nas hulheiras de Aberfoyle, na Escócia de outras eras.
“Pede-se ao engenheiro Jaime Starr o obséquio de se dirigir amanhã às hulheiras de Aberfoyle (…) onde lhe será feita uma comunicação da mais alta importância.” Assim começava esse livro. A hulha havia-se esgotado nas minas que foram abandonadas, mas estranhos mistérios ocorriam nas profundezas dela. Após muitas peripécias – e para muito resumir – descobria-se que o antigo capitão da mina (“Overman”, chamou-lhe o tradutor), um velho de nome Silfax, que todos julgavam morto, se refugiava nas galerias dela, acompanhado por uma neta e por uma estranha ave, um harfang, tão mais insólito quanto nunca consegui perceber de que espécie de pássaro se tratava. O velho ensandecido procurava uma vingança contra quem lhe roubara o último filão das velhas hulheiras e também o amor da neta. O plano dele era libertar grisú, um gás explosivo, e fazer ir a mina abaixo, com todos os que o haviam roubado. Terrível era a aparição final do velho, no meio de um lago subterrâneo, “de olhar sinistro, barbas alvíssimas, caindo sobre o peito, roupas talares e a cabeça coberta por um capuz”. Tinha na mão uma lâmpada de Davy e com ela queria fazer explodir o gás, o grisú. “Oh, grisú, oh grisú… Soou a hora da minha vingança!” No último minuto, dava-se a salvação e a morte de Silfax. Mas, até chegar aí, foram tardes e tardes em que eu nada mais esperava do que saber que mistério escondia a mina e quem era o fantasma que a habitava. O suspense foi demasiado. Precipitei-me para o livro e, nesse mesmo dia, começou a minha compulsiva paixão por Verne, que durou três anos e trinta livros. Começaram também os meus pesadelos com Verne, revendo o velho e o harfang de “penas brancas mosqueadas de pintas negras”. Os pesadelos ainda os consegui transmitir. Em carnavais da Serra da Estrela, em casa da Zézinha e do António Alçada, quando a neve caía lá fora, antes de deitar os meus filhos mais velhos (7 e 6 anos à época) eu contei-lhes resumidamente esse extraordinário romance, detendo-me, como a Luzinha fizera comigo, na descrição das tenebrosas galerias da mina, no pássaro sinistro e na aparição do velho com o seu grito de vingança. Imitava o gesto de “horrível imprecação” que Silfax soltou ao ver frustrados os seus intentos. Grito que foi o último que proferiu, pois se precipitou nas águas do lago que não quiseram restituir à sua presa.
As crianças ouviam-me aterradas e, ainda hoje, a minha filha Ana estremece a evocar os pesadelos infantis, provocados pelo grisú, pelo harfang e pelo velho Silfax com a sua barquinha e o seu “riso cavernoso”, enquanto se espalhava o cheiro do “hidrogénio protocarbonado”. Imaginem que eu lhe tinha contado a história dos canibais da Galera Chancellor! Não conhecem? Esperem até à próxima sexta-feira. Já não têm 7 anos.


1 de Abril 2005 in Público

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