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A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA

São aqui publicadas semanalmente as crónicas de João Bénard da Costa no jornal “Público”. Esta semana: “Os Róis de Génova”

Os Róis de Génova


Por João Bénard da Costa


No início do IV acto de A Gaivota de Tchekov, em casa de Sorine, pouco antes da chegada de Irina Nicolaevna Arkadina mai-lo seu reconquistado Trigorine, decorre uma daquelas “conversas de farrapos” em que o escritor foi insuperável. Parecendo que nada se diz, tudo se diz. Tudo sobre tudo num aparente nada sobre nada, com secundários que nunca o são (em Tchekov, não há personagens secundárias) a revelarem tanto do essencial como os chamados protagonistas.


A páginas tantas (já estou a falar de páginas), o pobre Medvedenko, tão mal-casado com Macha, pergunta ao fabuloso personagem que é Dorn – o médico que, no fim da peça, informa em surdina do suicídio de Treplev e que, no fim do primeiro acto, diz a Macha não saber o que fazer nem dela nem do amor dela – qual foi, de todas as cidades, do vasto mundo que ele percorreu, aquela de que mais gostou. “Génova” responde o doutor da mula russa. “Porquê Génova?” quer saber o jovem poeta. “Porque há nas ruas uma multidão excepcional. À noite, quando se sai do hotel, as ruas estão pejadas de gente. Circulamos no meio da multidão, sem saber para onde ir, à direita e à esquerda, em ziguezagues. Vive-se com a multidão, fundimo-nos psiquicamente com ela, e começa-se a acreditar na existência de uma única alma universal. Como aquela alma que, na sua peça, foi o papel interpretado por Zaretchnaia”.


A explicação é tão bizarra como bizarro é o personagem, possível “alter-ego” de Tchekov. O que ele diz – aparentemente – aplica-se a qualquer grande cidade (Génova nem é tão grande assim) e, na resposta à pergunta do filho de Arkadina, pode pensar-se (vindo a questão de quem vem) que, num processo mental do género da anedota do busto de Napoleão (se não conhecem, não sou eu quem vo-la irá contar, que anedotas dessas não se contam em salões) Dorn tortuosamente aproveita o pretexto para puxar a conversa para Nina, a “gaivota”. Na peça inicial, “peça dentro da peça”, a peça de Treplev representada por Nina quando ainda havia verão e lagos, ela definia-se como a “alma colectiva, universal”. Ela, ela, era essa alma. “Eu sou a alma de Alexandre Magno e de César, a alma de Shakespeare e de Napoleão, a alma da última das sanguessugas. Em mim, a consciência dos homens confundiu-se com o instinto dos animais. Lembro-me de tudo, de tudo, de tudo, e vivo, de novo, cada uma das vidas que existem em mim”. Era então que a mãe do poeta interrompia pela primeira vez a obra do filho, comentando em voz suficientemente alta: “Que peça tão decadente!”. Talvez o médico, no final, quisesse lembrar outra vez tudo, tudo, tudo, dessa noite inicial, em que ele foi o único a gabar o talento dos dois jovens, mas também a fazer ao autor da peça interrompida o aviso envenenado: “Uma obra deve exprimir uma ideia clara, precisa. Você tem que saber porque é que escreve. Senão, se se limitar a devaneios pitorescos sem uma finalidade precisa, vai-se perder. O seu talento será a sua perdição”. Será tudo isso que Dorn quis evocar no final, servindo-se de Génova? Ou Génova, que Tchekov visitou em 1894, dez anos antes de morrer, trinta anos depois de nascer, e que tanto amou, teve, para ele, um sentido especial e foi o pólo que lhe permitiu a passagem da alma individualíssima de Nina à alma colectiva, evocada no principio e no fim de A Gaivota?



2. Conscientemente, Tchekov não determinou a minha viagem a Génova, cidade que vi agora pela primeira vez. Nem sequer me lembrei que, durante os dias em que estive em Génova, se comemorou o centenário da morte dele, quando os balões de oxigénio já não o conseguiam fazer respirar e lhe deram champagne a beber. Foi a 2 de Julho. Cem anos depois, recebi em Génova a notícia da morte de outro Poeta. “A alma colectiva”? Seja como for, antes de partir, a Manuela de Freitas lembrou-me essa referencia tchekoviana, mas só no regresso a localizai. E nunca sai do hotel à noite, nunca me perdi na multidão, caminhei sempre com um objectivo preciso. Objectivo que não foi Tchekov, mas Rubens e a fabulosa exposição que esteve no Palazzo Ducale, entre 20 de Março e 11 de Julho: L’Età di Rubens. Este ano, Génova foi (é) Capital Europeia da Cultura e essa exposição era uma das várias com que a cidade que para si reservou o cognome de Soberba, se auto-celebrou. Quando pus o pé na rua, com um itinerário bem determinado, estava longe de adivinhar que coisas dessas não existem em Génova e que, uma vez entrado na Via Garibaldi, que antigamente se chamou Strada Nuova, depois Strada Maggiore (decreto de 1558) depois Strada Aurea (até 1882), só restava perder-me nos róis de Génova, de palácio em palácio e só nessa via contam-se treze dos mais soberbos palácios do mundo.



3. Tanto como eu, Génova convida ao desordenamento, mesmo nessa ordenadíssima Strada Nuova, tão apogeu do espírito renascentista quanto gigantesca fuga para o maneirismo e para o barroco. Convém, pois, que eu deixe de “conversar os farrapos” e de errar entre Tchekov e Sophia, e ponha alguma ordem nisto. Para lá de Rubens (lá chegaremos) outra exposição é maravilha total em Génova e essa poderá ser visitada até 5 de Setembro. Intitula-se L’ Invenzione dei Rolli e alguns dos muitos mistérios da cidade adensam-se nela. Para começar, esbarrei com a palavra “rolli” (em dialecto genovês “rollo”) Literalmente, pode traduzir-se por “rolos”, uma vez que as plantas com os desenhos de cada palácio eram “enroladas” para depois ser mostradas aos hóspedes ilustres da cidade, ou da aristocracia dela, que, segundo os seus gostos, escolhiam o preferido para morada. Mas esses “rolos” não eram apenas de desenhos, com tudo o que de vegetal evoca a palavra “planta”. Continham, também, a precisa enumeração do conteúdo de cada palácio, formavam um “ról”, no sentido dessas listas que convêm registar por certa ordem e para determinado fim, como os “róis” de peças de artilharia mandados fazer por Afonso de Albuquerque em Ormuz, como o ról de mentiras que Camilo acusou Herculano de ter escrito, ou como o ról da roupa que a freguesa de Beatriz Costa lhe deu para lavar na Aldeia da Roupa Branca. Génova foi a primeira cidade que fez o ról dos seus palácios, o que permitiu a Rubens em 1622 (dezoito anos depois de ter visitado Génova) editar o seu famoso livro Palazzi Antichi di Genova em que, com base nesse róis e na sua memória, desenhou para a posterioridade fachadas e interiores, numa obra que exerceu enorme influência junto dos grandes arquitectos europeus dos séculos XVII e XVIII. Com base nesses róis (e no livro de Rubens) se efectuou agora o restauro de quase todos esses palácios (bem como a abertura ao público dos que lhe estavam fechados) permitindo a criação de uma rua-museu, obra-prima da cultura arquitectónica e habitacional genovesa. As razões para a constituição destes “róis” são diversas (simultaneamente, de ordem politica, económica, jurídica, etc). República de muitos senhores e de muitas famílias, a distribuição dos terrenos em lotes e em zonas de construção impôs-se como única solução para que os direitos e privilégios de todos fossem respeitados. Acresce que as lutas entre nobres “velhos” e nobres “novos” eram acesas e que muitos disputavam os melhores pedaços. Donde, a criação de uma comissão “super partes” coordenada pelos legados do Papa e do Imperador, para obrigar a um “acordo constitucional”. Data de 1576 – inicio do apogeu da Soberba – o decreto inaugural dos “róis”, todos os anos acrescido de novos pergaminhos, que levaram a contar em 1624 trezentos “róis”, dos quais cerca de cinquenta para os grandes palácios da cidade antiga. Desenrolar hoje esses “róis” é percorrer Génova e descobrir como da topografia se passou à estética, com palácio a responder a palácio num jogo especular, vertiginoso e único.


4. Diz-se que, durante a Idade Média, junto ao espaço depois ocupado pela Strada Nuova, o único edifício de alguma importância era o prostíbulo, sobretudo frequentado pelos oficiais da guarnição de Casteletto. Alguns nomes de praças e ruas (Piazza Fontana Marose, Via della Maddalena) recordam esse passado medievo. Não sei se a lenda é vera ou não, mas há uma outra acepção de “rolli” que é importante recordar. É aquela que originou o termo francês “rôles”, para designar os papéis (como curiosamente se diz em português) confiados aos actores em peças ou filmes. Ora Génova, no século XVI (e ainda hoje) é sobretudo uma cidade teatral, com os papéis principais confiados aos palácios e igrejas, tanto quanto aos doges da “reggia republicana” a essa meia dúzia de grandes famílias de apelidos conhecidos (Doria, Spinola, Pallavicino, Lomellino, Grimaldi, Brignola, etc) que perpetuaram até finais do século XVIII a grandeza de banqueiros de reis e de senhores dos mares. Subitamente – pelo menos gosto de o pensar assim – nesse dédalo de ruelas estreitas em torno de um lupanar, abriu-se “la via più nobile che si possa trovar nell’intero mondo”. É uma rua relativamente comprida (416 passos escreveu Joseph Furttenbach em 1650) mas estreitíssima (12 passos segundo a mesma fonte). Mas dos dois lados dela erguem-se “imparaggiabili palazzi”, de mármore branco, amarelo, encarnado ou negro, ordenados numa perspectiva alucinante e cúbica.
“Strettezza della citá” “Angustezza delle strade”. A língua italiana é a mais bela, mas também a mais falaz. Mas são essas as palavras que ajudam, quando, nas ruas angustiantes, olhamos para as casas altíssimas que se comprimem e dilatam, como se estivéssemos no fundo de um navio de que as casas fossem as velas desfraldadas. A luz de Rubens chegou depois. Aqui a buscarei na próxima crónica.


16 de Julho 2004 in Público

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