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A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD

São aqui publicadas semanalmente as suas crónicas no jornal “Público”. Esta semana: “Dali, a omolete e o português”

DALI, A OMELETE E O PORTUGUÊS


Por João Benárd da Costa


1 – “Oh Salvador Dalí, de voz aceitunada!” Fazia-o morto há muitos anos, era de Inverno e era de 1989, e ei-lo que ressuscitou, finalmente centenário, a 11 de Maio desta semana, dia da festa de Catarina de Pozuelo. Tinha obrigação de saber mas estava distraído e foram os jornais quem mo lembrou. Saudades? Não muitas. Sempre o vi de longe, às vezes divertido, mais frequentemente sem muita pachorra. Pode ser da idade, já que, na altura em que descobri o surrealismo, os surrealistas lhe cuspiam em cima, como, ainda era novinho, ele cuspiu em cima do retrato da mãe. Foi Buñuel quem me contou esta história. Quando, em finais de 1929 (Buñuel com 29 anos, Dalí com 25), foi ter com ele a Figueras, para fazerem juntos “L’Âge d’Or”, com o rico dinheirinho do visconde de Noailles, o caldo estava entornado. O pai do pintor tinha descoberto um quadro em que este escrevera em letras garrafais: “Cuspo alegremente em cima do retrato da minha mãe.” Deu-lhe um pontapé em sítios sensíveis e pô-lo no olho da rua. Não se iam repetir os doces dias de um ano antes, quando os dois, em recôndita harmonia, tinham escrito a quatro mãos o argumento de “Un Chien Andalou”. Não foi só por falta de casa. Os egos de cada um deles, que não eram murchos, já se olhavam desconfiados. Dalí achava que Buñuel lhe roubara os louros do andaluz. Buñuel suspeitava que Dalí pensava que um filme é de quem o escreve e não de quem o realiza. Além disso, Dalí já tinha roubado Gala a Éluard e, ouriço ou rinoceronte, a futura “virgem auto-sodomizada pelos cornos da sua própria castidade”, embirrava com o amigo Luís e não gostava da sua companhia. Buñuel saiu depressa de Cadaqués e, como “o grande masturbador”, foi escrever sozinho o argumento de “L’Âge d’Or” em Hyères, numa propriedade dos viscondes. No futuro, fizeram-se muitas maldades. Quando Dalí chegou à América, em Junho de 1940, soube que o cineasta também por lá andava e até tinha um bom emprego no departamento de cinema do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque. Dalí já tinha namoro com o franquismo, embora namoro à distância. Buñuel era um exilado político, que servira a Espanha republicana. Quando conheceu Rockefeller, que tinha entendido num sentido demasiado americano a profissão de republicanismo que Buñuel lhe fizera, perguntou-lhe como era possível que um museu dele (dele, Rockefeller) desse emprego a um ateu comunista. Como é óbvio, deixou de dar. Graças ao velho amigo, Buñuel ficou desempregado. Nos anos 50, andava Buñuel pelo México a fazer melodramas, a que ninguém prestava atenção, Dalí, interrogado sobre a verdadeira autoria de “Un Chien Andalou” e de “L’Âge d’Or”, respondeu que felizmente as merdas que o cineasta andava a fazer metiam pelos olhos do mais cego quem era quem nesses celebérrimos títulos.
Consta que, quando ambos já eram octogenários, e não se viam nem se falavam há quarenta anos, Dalí teria feito saber a Buñuel que, antes de morrerem, gostava de voltar a beber um “dry-martini” com ele. “Também eu”, mandou-lhe dizer o realizador. “Só que já não bebo dry-martinis.”


   
                Paris, 1934. Foto de Carl Van Vechten


2 – Meti-me por Buñuel e perdi-me em vias lácteas. Onde é que eu ia, ou por onde é que eu comecei? Pois é. Estava a falar dos meus mornos sentimentos pelo pintor dos bigodes. Também se devem a Buñuel, que não foi nada meigo com ele, como é compreensível. É preferível voltar ao Salvador Dalí, “de voz aceitunada”, da “Oda a Salvador Dalí” de Garcia Lorca, poema de 1925. Puxei-me pela língua e cá vai outra pouco comemorativa. Sabem o que respondeu Dalí, em 1966, quando Alain Bosquet lhe perguntou o que é que ele tinha sentido quando soube do fuzilamento de Lorca? “Fiquei contentíssimo. Aliás, como sou um jesuíta dos bons, de cada vez que morre um amigo meu, tenho a sensação que fui eu quem deu cabo dele, que ele morreu por minha causa.” Era o mesmo Lorca de quem, em tempos, Dalí dissera “personificar por si só o fenómeno poético na sua totalidade: confuso, sanguinolento, viscoso e sublime”? Era. Mas Dalí mudou mais na vida do que na pintura, essa pintura que tanto mudou. Em qualquer caso, há um ponto em que eu acho que ele não mudou e que é justamente salientado na ode de Lorca. É o que se refere à “firme dirección de tus flechas”, “a tu bello esfuerzo de luces catalanas”. Infelizmente, se esse acerto das flechas e esse esforço de luz estão quase sempre presentes na obra de Dalí, este não seguiu o conselho com que Lorca concluiu a ode citada: “No mires la clepsidra con alas membranosas, / ni la dura guadaña de las alegorías / Viste y desnuda siempre tu pincel en el aire / frente a la mar poblada con barcos y marinos.”


3 – Houve um cineasta – outro cineasta – que teve olhos para ver isso. Foi Alfred Hitchcock, quando, em 1945, convenceu Selznick a convencer Dalí a conceber a célebre sequência do sonho de Gregory Peck em “Spellbound”. “Pedi a Selznick que conseguisse que Dalí viesse trabalhar connosco. Aceitou, mas julgo que nunca percebeu as minhas razões. Provavelmente, pensou sobretudo numa operação publicitária, enquanto o que eu queria era mostrar sonhos de uma grande nitidez visual, com traços agudos e claros, imagens muito mais claras do que as do resto do filme. Até aí, tradicionalmente, as sequências de sonho em cinema eram sempre mostradas entre turbilhões de nuvens, voluntariamente vagas e imprecisas, com personagens evoluindo numa mesclada bruma de neve carbónica e de fumarada. Eram essas as convenções reinantes e eu decidi fazer o contrário. Escolhi Dalí porque há, na maneira de pintar dele, uma precisão alucinatória, exactamente oposta às evanescências e às névoas. Chirico também podia ter servido. As longa sombras, o infinito das distâncias, as linhas que convergem na perspectiva… rostos sem forma.” Parece que esse sonho, que na versão final do filme não chega a durar mais de cinco minutos, teve inicialmente uma muito maior duração. “Naturalmente” – disse Hitchcock – “Dalí inventou coisas estranhíssimas que não foram possíveis de realizar. Uma estátua que se partia e de dentro dela saíam formigas que depois a cobriam toda. Até se chegou a ver Ingrid Bergman coberta por formigas.” Mas há uma fotografia (infelizmente a imagem não está no filme) em que se vê Ingrid Bergman com uma espécie de cilício e o pescoço envolto por uma coleira de metal, com uma flecha. E, nesse sonho de Gregory Peck com uma Ingrid Bergman ninfomaníaca, aos beijos a todos os homens, conservaram-se felizmente os homens sem rosto segurando rodas moles e um cabaré de paredes cobertas de olhos, que outro homem corta ao meio com um gigantesco par de tesouras. Raccord longínquo com a famosa cena do olho rasgado ao meio por uma lâmina de barba, no início de “Un Chien Andalou”, tão mais insuportável quanto é mais luminosa a córnea branca que a lâmina vai cortar. “No trespassing”. E tudo está trespassado. E é a lua ou são os olhos? Tudo pode ser tudo, como em todos os símbolos e como também aconteceu no “Chien” com as mamas e com os rabos (ou mamas-rabos, ou rabos-mamas) da mulher nua, que, apalpados pelo amante, o mergulham em tal êxtase. Não há dissoluções mas ininterrupta continuidade. Era o tempo (1929) dos “desejos insaciados”. Tempo que, efemeramente, regressou, em 1945, não numa tela mas nuns minutos de um filme de Hitchcock.


4 – Deixei Dalí vogar em cinema. Não vou sair desse vagar. Em 1937, Dalí escreveu a “análise surrealista e espectral dos céus hollywoodianos”. Reza assim:

“ESPECTROS
Cecil B. DeMille é surrealista pelo seu sadismo e pela sua fantasia. Harpo Marx é surrealista em tudo. O bigode de Adolphe Menjou é surrealista Clark Gable não é surrealista Et cetera.
FANTASMAS Gary Cooper é surrealista nesse filme de sonho e delírio que é ‘Peter Ibbetson’, e também com a sua tuba em ‘Mr. Deeds’. O êxtase de Garbo é surrealista.
William Powell é surrealista pelas ruínas do seu olhar Robert Taylor não é surrealista Groucho Marx é surrealista pelo seu cinismo e pelo seu marxismo Et ecetera.” Por isso, talvez não seja de espantar que a primeira tentativa de Dalí para voltar ao cinema, depois de “L’Âge d’Or”, tenha sido o projecto de um filme com Harpo Marx, a quem ofereceu uma harpa com cordas feitas de arame farpado, embrulhadas em celofane. O filme esteve para se chamar “Giraffes on Horseback Salad”. Por isso, talvez não seja de espantar que, depois de Hitchcock, tenha batido à porta de Walt Disney para um certo “Destino”. Por isso, talvez não seja de espantar que, em 1954, Dalí escrevesse “O Carrinho de Mão de Carne” em que haveria uma cena, nas margens do lago de Vilabertran, em que Nietzsche, Luís II da Baviera e Karl Marx cantariam com virtuosismo inultrapassável as respectivas doutrinas, acompanhadas a Bizet. No meio do lago, a tremer de frio, com água até à cintura, uma velha muito velha, vestida de toureiro, teria como penteado uma “omelette aux fines herbes” em instável equilíbrio na cabeça careca. De cada vez que a omelete escorregasse e caísse na água, um português fritava outra e voltava a pô-la. Não houve girafas, não houve destino, não houve carrinho de mão. É por isso que prefiro que recordem o Salvador Dalí de voz de azeitona ou a “Vénus y Cupidillos” de 1925. Não desfazendo no português das omeletes.


(14 de Maio 2004 in Público)

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