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A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD

São aqui publicadas semanalmente as suas crónicas no jornal “Público”. Esta semana: “NORONHA DA COSTA: LUZ ENTRE TANTAS TREVAS.”

A PALAVRA DE JBC


NORONHA DA COSTA: LUZ ENTRE TANTAS TREVAS.


Por João Bénard da Costa


1 – A 15 de Outubro de 1938, a Pirelli de Milão editou “fuori commercio”, nas oficinas do Instituto Italiano das Artes Gráficas de Bérgamo, um volume sobre Tiziano, com introduções em latim, italiano, português, alemão, inglês, espanhol e francês, precisamente por esta ordem. De casa de meus pais, onde entrou em data que não sei precisar, mas que não seria muito distante da data da edição, passou à minha, em 1997, quando se fechou a casa original e originária. Do livro se fizeram 500 exemplares numerados e o que hoje é meu tem o número 362. Da história da edição, da razão dela, nada mais sei. Sei é que, ainda antes do meu primeiro livro de pintura, já abordado em outras crónicas, e que me deram tinha eu 8 anos, foi esse livro encadernado de carneira, com capa onde só figura a maiúsculas douradas o nome Tiziano, o primeiro livro que me mostrou fantásticas figuras e me iniciou à pintura. “Titianus Vecellius, qui Vasari judicio praeter omnes artifices naturae imaginem mirum in modum expressit”, era a sentença inicial do texto latino. Na versão portuguesa traduzia-se: “O mais belo e mais perfeito imitador da natureza segundo Vasari.”
Minha primeira questão: quem era esse Vasari, autoritariamente citado, ainda antes da informação sobre a data e o local do nascimento do pintor? Não recordo se mo explicaram. Vasari surgiu-me entre as brumas do latim e entre essa bruma ainda hoje o situo. Só muito, muito depois, aprendi que era o autor de “Le Vite dei più eccellenti pittori, scultori e architetti” e que essa obra é o primeiro texto fundamental sobre a história da arte italiana. Tinha um rosto comprido e pálido, uns olhos claros e tristes e uma longa barba negra. As suas “vidas” começam em Cimabue (século XIII) e vão até aos “nossos tempos”, tempos dele, tempos do maneirismo, publicadas que foram em 1550, em Florença, tinha Vasari (1511-1574) trinta e nove anos. Ninguém mais escreveu sobre a pintura italiana desses trezentos anos sem o citar. E se começou com Cimabue, quis “anco nel fine di queste mie fatiche raccórre insiemi e far note al mondo l’opere che la divina bontà mi ha fatto grazia di condurre”. Ou seja, ele, como pintor, encerra o livro (os muitos livros) que dedicou a 182 predecessores, não incluindo um vasto etecetera. Nunca mais se escreveu – nem se podia escrever – uma obra assim. Ninguém mais acreditou, como Vasari, que a “história, em verdade, deve ser o espelho da vida humana, não para narrar os casos acontecidos a um príncipe ou a uma república, mas para registar os conselhos, os caminhos e os artifícios dos homens”. Vasari, para mim, é tanto o cheiro desse livro (falo do “meu” Tiziano), como o exemplo impossível de uma aproximação em que gostaria de me incluir, para pintar narrando ou historiar pintando. Quem me queira acusar de delírios megalómanos tem citação fiável no período precedente. Se quiserem esquecer que eu escrevi “exemplo impossível” e que o lúcido conhecimento dessa impossibilidade impede qualquer outra leitura que não a de um sonho por haver ou a de um sonho para ver.


2 – Mas talvez não seja por acaso que me lembre de Vasari em qualquer museu, em qualquer exposição. A crítica de arte e a história da arte progrediram imenso desde 1550 até aos meus tempos? Não duvido. Mas a fascinação das vidas e dos vivos que essas vidas viveram talvez nunca mais tenha sido igualada. O que aqueles olhos viram outros olhos nenhuns verão como ele o viu. Olhar de pintor sobre a pintura, lançado na escrita, quando as imagens se lhe formaram no pensamento. Agora, tenho diante de mim uma tela pintada a tinta celulósica, onde dois vultos sobrepostos de mulher (a mesma mulher, outra mulher) olham para mim, cada uma com um olho só. Formam uma espécie de rochedo bifronte, atravessado por um raio de intensa luz. Aos pés da rocha há uma água verdíssima e, à esquerda dela, sombras de árvores. O fundo, que não é mulher, nem sereia, nem esfinge, nem rocha (quero eu dizer, o fundo da parte esquerda da tela), é um crepúsculo dourado velho que tinge vagamente de encarnado parte da água. Para descrever e contar esse quadro era preciso talvez contar a vida de quem o pintou. E chamar-lhe, como Vasari chamou a Tiziano, “o mais belo e perfeito imitador da natureza”. Porque é sempre de imitar a natureza que se trata. Luz entre tantas trevas. E estou já a falar de uma tela de Luís Noronha da Costa, aquele que escreveu “Ver é ter-sempre-já-visto”. Vasari não recusaria esta fórmula e talvez pressentisse o que Luís Noronha – uma vez mais – chamou “o eterno retorno do mesmo”. Do ícone para a paisagem e vice-versa, disse ele falando de um pintor (Rothko) que viveu quatrocentos anos depois de Vasari.


3 – Confuso? É-se sempre confuso quando se vai de memória em memória, de palavra em palavra. Só eu sei porque precisei de Vasari para me chegar a Luís Noronha. Mas, se eu não tivesse visto o livro de Tiziano, se eu não tivesse visto o livro de Vasari, talvez nunca fosse capaz de ver a pintura de Noronha da Costa, como a vi desde que a conheci na Galeria Quadrante, em 1969 (Magritte após Polanski) até que a revi, em 2003, na fabulosa exposição do Centro Cultural de Belém, intitulada Noronha da Costa Revisitado. No reduzido espaço da Quadrante de outrora, ou nas muitas e vastas salas do CCB de hoje, o que senti antes de ver (ou o que vi antes de sentir) foi a mesma luz entre tantas trevas. E tanto falo metaforicamente (a luz da obra de Luís Noronha nas trevas do Portugal de 60 ou nas do Portugal de 2003) como falo literalmente. Toda a pintura de Luís Noronha é uma explosão de luz (lume ou fogo, talvez fosse melhor dito) jorrando de uma treva que em nenhuma tela dele, nem nas mais solares, se dissipa, pois que é o plano que serve de fundo ao plano. Entre a luz e a treva, ou na terceira dimensão que não está entre, mas as projecta, como as imagens cinematográficas, imagens errantes de corpos ou objectos desfocados. Mas foi Luís Noronha quem escreveu – descobri-o agora no notável catálogo da exposição – que “para nós, portugueses, a imagem foi sempre algo de errante, tendo sido a nossa pintura, nos seus raros momentos altos, a impossibilidade de encontrar uma imagem definida”. Daí, talvez, a vertiginosa sensação de labirinto que o percurso pelas salas de Belém nos dá. “Só há saída pelo fundo”, como escreveu Cristovam Pavia. Mas o fundo, aqui – ou ali – está à superfície, superfície que é a mais funda ilusão dessas imagens de verso e reverso, especulares e espelhares.


4 – Entre a escancarada quantidade dessa obra (ouvi dizer que só no período coberto pela exposição (1965-1983) foram inventariadas quatro mil obras) e a alucinante qualidade das imagens que desfilam em Belém, que escolher? Não sou tão narcisista que vos vá falar da tela das velas e da tomada de corrente, fonte de luz, que há mais de trinta anos me acompanha a vida, as pessoas perdidas e as pessoas achadas, os mortos e os vivos, na minha casa de Sintra (tanto, tanto tempo) ou, mais recentemente, na casa da Arrábida. Não sou tão fetichista que me fique no prodigioso pórtico dos mil objectos, espécie de “yellow road” para a caminhada até Oz. Não sou tão esotérico que, aberta uma cortina preta, me perca e vos perco (me ache e vos ache) nas redes plásticas e fluorescentes de luz negra, harém imaginário de odaliscas perversas e senhoriais. Não sou tão saudosista que me demore no Nosferatu que o Luís escolheu para presidir à Cinemateca, ou nesse D. Quixote (D. Quixote, será?) que, ao fundo do branco, é fantasma erótico de uma mulher encarnada e loura e de uma mulher nua e azul. Hesito entre aquela Lola Montes de treva, chamada “Requiem” pelo Ocidente, que tanto invoca Ophuls como Syberberg, andrógina como Ludwig, colegial como Martine Carol, quando se debruça na amurada, na noite que se fez matéria dela. Mas acerco-me do espectro da odalisca de Ingres, filmada pelo Pintor que só vê dela o que nós nunca vimos e “voyeur”, num enquadramento flamengo, filma esse desconhecido do conhecido, frontal a nós e oblíquo a ela. Em qualquer deles, como em tantas outras desse prodigioso ano de 1971 “o ecrã cobre todas as superfícies visíveis”, como bem nota José Gil num belo artigo do catálogo. Essa série de revisitações à pintura (de Piero a Rafael, de Vélasquez a Vermeer, de Ingres a Delacroix, conduzidas por Böcklin e Gaspar David Friedrich) coadas pelo ecrã e pela persistência da imagem do cinema, é aquela que mais me deixa estupefacto, e que pode justificar a aparente desconexão da minha inicial digressão vasariana. Mas a exposição não convida à particularização, pelo menos à primeira vista. O que nela se impõe, como em todas as grandes exposições individuais de grandes pintores, é esse sublime visual a que os grandes museus também dão acesso nas suas mais nobres salas. Evidente, a grandeza. Evidente, a demanda do sublime. Evidente, terminar como terminei o meu texto para o catálogo. “Ninguém em Portugal levou mais longe essa demanda de que Luís Noronha da Costa.” Só não julgo, ao contrário dos comissários, que essa evidência seja a partir de agora evidente. Em terra de cegos, só quem tem um olho é rei. Quem vê com os olhos todos, o corpo todo, a alma toda – como Luís Noronha da Costa – só pode estar condenado ao exílio e à maldição.


(19 de Dezembro 2003 in Público)

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