Em Busca de Ideias Contemporâneas

Um Tempo de Primavera

Folhetim de Verão “Em Busca de Ideias Contemporâneas” – capítulo 31

Chegamos ao termo do Folhetim de Verão de 2025. Partimos de um desafio lançado pelo nosso decano, Edgar Morin, no ano em que, cheio de energia, completou 104 anos de vida. Quis deixar uma homenagem aos seus amigos portugueses, uma vez que lhe permitiram ter uma experiência única de vida. A democracia portuguesa não nasceu de geração espontânea, mas fruto de um caminho largo e longo. Houve muitos resistentes, houve prisioneiros e torturados, mas nada teria sido possível sem uma persistente preparação intelectual, e uma solidariedade internacional. Nada foi fácil. Como se viu no imediato pós-guerra, em termos geo-estratégicos, a situação da Peninsula Ibérica não era fácil. Logo em 1945 houve antigos oposicionistas e jovens entusiastas que pretenderam criar condições para um abertura política e eleitoral. Tal não foi possível. Se virmos bem, foram muito poucos os apoios internacionais à causa democrática portuguesa. Só a Itália contou com a existência de iniciativas políticas e parlamentares visando o apoio às resistências ibéricas. Contudo, a partir dos anos sessenta, há uma tentativa séria que Edgar Morin quis destacar e que envolveu um grupo de fraternais amigos portugueses, que desde cedo o pensador francês reconheceu como possuindo um visão de largo prazo. Se no curto tempo, houve quem suscitasse dúvidas ou pretendesse uma ambição maior e mais profunda, a verdade é que quando analisamos o prazo longo da institucionalização da democracia, verificamos que em vários campos de ação foi possível lançar diversas pistas na sociedade civil, que produziram efeitos positivos, de modo transversal. Referimo-nos ao grupo que teve como principal animador António Alçada Baptista, à frente da revista “O Tempo e o Modo”. Quer junto da oposição tradicional, de Mário Soares e Francisco Salgado Zenha, quer junto de uma ala renovadora do Estado Novo, de José Guilherme de Melo e Castro, José Pedro Pinto Leite, Veiga Simão, Rogério Martins ou João Salgueiro, quer de modo inesperado através dos jovens milicianos mobilizados para o esforço de guerra, como Ernesto Melo Antunes, assinantes ou leitores de “O Tempo e o Modo”, quer ainda por parte de intelectuais de todos os campos políticos que respeitavam António Alçada, o certo é que se criou uma verdadeira rede de cumplicidades que permitiria no período seguinte à Revolução encontrar condições de estabilização.

Temos, assim, uma convergência na sociedade civil que assegurou uma transição diferente da espanhola, mas com pontos de contacto. Podemos dizer, por exemplo, que os “Cuadernos para el Diálogo” de Joaquin Ruiz Gimenez tiveram um papel semelhante a “O Tempo e o Modo”. Os contactos com opositores espanhóis, como Dionísio Ridruejo no Centro Nacional de Cultura, José Bergamin, com Tierno Galván ou José Vidal Beneyto e com desenvolvimentistas moderados fizeram-se sentir. Se em 1945 a democratização não encontrou um clima internacional favorável, a partir de 1958, a candidatura de Humberto Delgado e o memorando do Bispo do Porto tiveram efeitos significativos e irreversíveis internos e externos e a Livraria Moraes e a revista de Alçada Baptista foram os símbolos culturais evidentes. Mário Soares compreendeu o novo paradigma que e não só se abriu a uma cooperação nova relativamente às relações no seio da oposição tradicional, mas também teve oportunidade de vincar a necessidade de uma lógica liberal democrática e europeísta. Por outro lado, os estudantes universitários da crise de 1961, como Jorge Sampaio, marcariam a sua presença, logo no primeiro número da nova revista.

É importante deixar claro que Edgar Morin, bem como Jean-Marie Domenach da revista “Esprit” e Pierre Emmanuel, no Congresso para a Liberdade da Cultura, conjugaram esforços no sentido de batalhar no campo intelectual pela democracia. No Centro Nacional de Cultura, Sophia de Mello Breyner e Francisco Sousa Tavares desempenhariam um papel muito profundo quer no mundo intelectual, designadamente com jovens escritores, poetas e artistas, mas também junto de católicos inconformistas, como Frei Mateus Peres e Frei Bento Domingues, além de Nuno Teotónio Pereira, que lançariam as sementes da opção democrática e anticolonial, rompendo com a posição tradicional da oposição, ainda sob os efeitos do ultimatum inglês de 1890. João XXIII, ao convocar o Concílio Vaticano II fê-lo para superar a lógica do eurocentrismo, pondo a tónica nos sinais dos tempos, como salientaria na encíclica “Pacem in Terris”. Lembre-se que nos trabalhos do Concílio apenas usaram da palavra dois bispos portugueses, de tónica renovadora – D. António Ferreira Gomes (Porto), e D. Sebastião Soares de Resende (Beira). Domenach tenta mobilizar os leitores de “Esprit”, mas o efeito não demorará, a revista é proibida em Portugal. Nem mesmo a referência ao nome da revista é permitida pela censura, pelo que os redatores portugueses passam a usar a expressão de “revista de Mounier”.

Edgar Morin entusiasma-se com os amigos portugueses que em muito pouco tempo evoluem rapidamente no sentido da compreensão das causas profundas da justiça e da solidariedade humana. No fundo, a ideia de complexidade que ocupa as investigações de Morin encontra eco no generoso contributo de quem no dia a dia vai provando a vantagem indiscutível dos compromissos, que aproveitam os contributos de todos na medida das suas especificidades. A Democracia constrói-se a partir da compreensão da vida quotidiana e nada melhor do que fazer da entreajuda o método adequado para defender o bem comum. Sempre a relação entre a Raiz e a Utopia, entre a tradição e a modernidade, entre o passado e o futuro. Daí a importância da partilha de preocupações e de uma reflexão em diálogo, assente na aceitação das diferenças e na procura de uma mediação no seio das instituições. Sendo a liberdade um valor essencial para Edgar Morin, o certo é que há nele uma preocupação dialógica sempre presente.

A fonte do Humanismo europeu encontra-se na Grécia e no Cristianismo – que determinam uma ideologia, um conflito e uma inter-fecundação mútua das diferente fontes. E há ainda a ciência como domínio do conhecimento e da experiência. Mas Morin pôs sempre em diálogo realidades diferentes que constituem a pessoa humana. Por isso gostava de lembrar o pensador italiano que falava da ciência como “cantiere tumultuose”, “estaleiro tumultuoso”. Falando de Pascal e Dostoievski, lembrava que Pascal leu Montaigne e apreendeu o ceticismo crítico. Ora, Pascal era um cientista, um espírito racional, que pretendeu com as armas da razão mostrar os limites dessa mesma razão. Contudo, também era um homem de fé. E vai demonstrar que a competência da Razão é limitada, ou seja, há uma ordem, a que chama ordem da caridade que a razão não pode alcançar. Pascal utiliza o ceticismo para criticar a razão. Rompendo com o pensamento teológico clássico, para o qual Deus é absolutamente evidente e provado, diz-nos que Deus é incerto, sendo um assunto a discutir. E propondo este desafio, como aposta, introduz a dúvida e a controvérsia no que é mais fundamental – Deus. É evidente que este pensamento de Pascal, pensamento trágico, que ele viveu de uma forma intensa, é um dos fulcros mais extraordinários da cultura europeia. Quanto a Dostoievski, é preciso dizer que a cultura russa é uma das grandes culturas europeias como cultura viva, porque vive da oposição entre eslavofilia e ocidentalismo. O autor de “Crime e Castigo” assume, assim, essa contradição com um intensidade incrível. Depois de ter sido um revolucionário ocidental, torna-se um eslavófilo pro-czarista, mesmo sem perder fermento da dúvida e da contradição, que se exprime no “Apólogo do Grande Inquisidor”.

A cultura europeia é, assim, marcada pela tragédia e pela contradição e teve um potencial universal desde o seu nascimento. Mas, apesar da sua particularidade – na racionalidade, na ciência e no humanismo –, está hoje universalizada. Há três séculos o Ocidente era uma pequena porção da Europa, hoje, a Europa é uma pequeníssima parte do Ocidente… Não somos proprietários de uma cultura. Somos apenas herdeiros, o que é bem diferente. E assim estamos numa situação em que o património é comum a toda a Humanidade.

A intensidade dos debates e das reflexões torna-se essencial. Por isso devemo-nos empenhar para que esta problematização se transforme num novo Renascimento. Esta é a preocupação de Edgar Morin, não perder a memória de mil encontros fundamentais. Daí a insistência em deixar fixada a importância deste encontro português, que definiu a construção da democracia entre nós, não como protagonismo, mas como pano fundo, como rede de cumplicidades. Estamos num diálogo vivo, não de protagonistas maiores, mas das subtis sinapses que permitem aos acontecimentos importantes ter lugar. E muitas vezes um encontro aparentemente menos importante torna-se a chave essencial de uma explicação, exatamente como o acontecimento é verdadeiramente o grande mestre interior.  

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