Continuamos com John Rawls. Na ordem de ideias analisada, a cooperação é guiada por regras publicamente reconhecidas. Implica a consagração de termos equitativos no funcionamento da comunidade, que permitem a reciprocidade e o mutualismo. E dessa cooperação resulta uma vantagem racional para todos os membros da sociedade. As pessoas, enquanto cidadãos livres e iguais, participam, assim, ativamente neste projeto comum – segundo um sentido de justiça e uma conceção de bem. Daí que seja importante compreendermos qual a posição original de que partem os parceiros, a fim de descobrirmos a conceção de justiça que está em causa. As pessoas, independentemente das suas convicções, têm um lugar na sociedade e são sujeitos de direitos e deveres – desejando favorecer os seus próprios interesses, escolhendo os princípios de justiça capazes de definir equitativamente os termos da sua associação. Deste modo, as convicções e os compromissos fazem parte da identidade não pública das pessoas. E, sendo fundamental que o espaço de liberdade individual seja preservado, que as opções individuais no tocante às convicções sejam protegidas, a verdade é que as suas atitudes na sociedade decorrem da análise objetiva que fazem dos interesses concretos. Compreende-se, pois, que uma conceção política da pessoa exija, no fundo, a consideração da responsabilidade, pedra angular de um projeto de justiça. Por isso a ideia de “justiça como equidade” procura basear-se num “consenso de sobreposição” (overlapping consensus), a partir de várias considerações e convicções éticas que encontram um espaço plural de encontro e de afirmação. Ora, cada uma das doutrinas filosóficas, morais e religiosas vai reconhecer a “justiça como equidade” segundo as suas razões próprias. Não têm, pois, razão os que consideram haver um relativismo ético ou uma indiferença moral no pensamento de Rawls. O que acontece é que “a teoria da justiça” não é unilateral nesse domínio – uma vez que é concebida para uma sociedade pluralista. E o pluralismo não é confundível com relativismo, já que o “consenso”, a que se refere Rawls, pressupõe diferenças e diálogo de ideias e de convicções, que se tornam compatíveis a propósito da “justiça como equidade”.
Para John Rawls “o conceito de justiça é independente do conceito de bem e anterior a este”. No entanto, permite que diversas conceções de bem se afirmem – o que assegura a formação de um consenso muito mais estável do que se se fundasse em doutrinas céticas ou indiferentes por contraponto aos valores morais, filosóficos e religiosos ou do que se limitasse a aceitar os princípios da justiça como um mero modus vivendi. Do que se trata para o autor de Uma Teoria da Justiça é de pensar a sociedade justa, não como sociedade igualitária nem como sociedade dominada pelo fundamentalismo do mercado, mas como sociedade equitativa na qual os benefícios mínimos e máximos obtidos por alguns aproveitem ao máximo a todos, e em especial aos mais favorecidos. Liberdade e igualdade ligam-se, tornam-se faces de uma mesma moeda. E, para além da igualdade de oportunidades importa corrigir permanentemente as desigualdades e a exclusão. Afinal, numa sociedade marcada por profundas divisões entre conceções do bem opostas e incomensuráveis entre si, a teoria da justiça como equidade permite-nos, ao menos, conceber a unidade e a coesão de uma sociedade como sendo, ao mesmo tempo, possíveis e estáveis.
Mas, para além da sua obra, John Rawls foi uma referência moral. Longe de uma conceção dogmática ou de qualquer cedência ao indiferentismo, o filósofo nunca se deixou ficar satisfeito pela reflexão produzida. Depois de 1971, data da sua obra maior, resultado de uma intensa pesquisa de muitos anos, Rawls continuou a aperfeiçoar a sua “teoria” (uma teoria), a partir da leitura dos seus críticos e da formulação de esclarecimentos e de novas perspetivas. Os liberais criticaram-no por não dar maior importância ao mérito individual. A crítica não tem, porém, razão de ser, uma vez que o facto de se dar especial atenção aos menos favorecidos não significa que se esqueça os prémios de quem tem talentos para dar. Suum cuique tribuere – diriam os legistas latinos – a cada um o que é seu, sendo dever da humanidade cuidar de todos.
Grande teórico dos fundamentos do Estado Social moderno, John Rawls ensinou-nos ainda que não poderemos ser complacentes com as ineficiências e inequidades desse mesmo Estado. Como salientou Fernando Valllespín, “na conceção kantiana da personalidade moral e na ação redistributiva de um Estado intervencionista encontrou as duas bases sobre que sustentar o seu projeto, a mais sólida teoria da justiça aparecida nas últimas décadas” (El Pais, 27.11.02). Rawls foi um mestre de vida e de ação. Seremos fiéis à sua atitude se não renunciarmos ao progresso das ideias em nome da justiça.


