Como bem recordou José Tolentino Mendonça, a propósito de haver «uma violência fundadora transferida simbolicamente para a transcendência», a «passagem das expressões sociais violentas à proposição firme e comprometida da paz não acontece por um auto-mimetismo, pois nenhum discurso religioso está na sua formulação, totalmente isento de violência. Impõe vontade e determinação». De facto, «as nossas sociedades não se definem apenas pelo que integram, mas também pelo que excluem». Daí a necessidade de tomar consciência da violência arcaica que ainda persiste em nós… Se René Girard era um homem de fé, o certo é que nunca escondeu as suas dúvidas e limitações no tocante às explicações dos fenómenos humanos. Como salientou Jean Birnbaum: «Exegeta com uma curiosidade sem limites, (Girard) opunha à ferocidade do mundo moderno, à aceleração do mal, a virtuosidade tranquila dum leitor que nunca deixou de servir as Escrituras» («Le Monde», 6.11.2015). E note-se que o pensador francês deve ser lido em articulação com o contributo de outros autores como Giorgio Agamben e Gianni Vattimo, que manifestaram um especial interesse pela obra e originalidade de René Girard. Giorgio Agamben, em «O Poder Soberano e a Vida Nua – Homo Sacer» (tradução de António Guerreiro, Presença, 1998), fala da decadência da democracia moderna e da sua progressiva convergência com os Estados totalitários, nas sociedades pós-democráticas «do espetáculo», resultantes da confluência entre o modelo jurídico-constitucional e o modelo biopolítico do poder. Em lugar do contrato social, na aceção tradicional, Giorgio Agamben fala do estado de exceção como zona de indistinção entre a exclusão e a inclusão. Trata-se, de algum modo, da materialização da sobreposição entre o poder político e o poder físico de que fala Kantorowicz, na sua obra clássica sobre os dois poderes da monarquia tradicional e suas sequelas… Girard critica, por seu lado, o consumismo e o imediatismo que fragiliza a legitimidade da mediação dos poderes instituídos.
Num tempo em que a violência parece querer regressar numa lógica arcaica (como temos visto com a escalada do terror no Médio Oriente e na Ucrânia), René Girard insiste na necessidade de tirar consequências atuais da sua explicação: «estreito é o caminho entre a conservação que mantém os ritos e fossiliza a história, e o falso revolucionarismo que ao refazer a violência, refaz outros ritos que exigem mais vítimas que os ritos precedentes». O certo é que, a partir do momento em que compreendemos verdadeiramente os mitos, não podemos tomar o Evangelho como um outro mito, uma vez que é ele que nos faz compreender a realidade mítica, ela mesma… Quando vivemos intensas perplexidades a propósito da violência que suscita e agrava a violência (abyssus abyssum vocat), importa recordar, com Girard: «que toda a violência doravante revela o que fica revelado pelo lugar essencial da paixão de Cristo, a génese imbecil dos ídolos sangrentos, de todos os falsos deuses das religiões, das políticas e das ideologias»… Trata-se, no fundo, de contrapor uma resposta centrada no respeito mútuo e na dignidade humana, por contraponto às diversas formas de idolatria…


