Em novembro de 2015 morreu nos Estados Unidos, onde vivia há longos anos, René Girard, um dos pensadores contemporâneos mais estimulantes, que dedicou parte importante da sua vida intelectual à análise da violência e da sua superação nas sociedades humanas. A partir da noção de «violência mimética», da leitura da Bíblia e da influência do cristianismo, o autor de «Le Bouc Émissaire» (Grasset, 1982) procurou uma explicação para evolução divergente entre as religiões arcaicas e a judaico-cristã no tocante aos mitos violentos originais. Num tempo em que o tema da escalada da violência está na ordem do dia, a obra de Girard ganha um sentido muito especial, permitindo uma reflexão aprofundada sobre o panorama que nos preocupa e sobre as respostas a encontrar num contexto de tão grande complexidade.
Vindo da Filologia e da Literatura, Girard exerceu o seu magistério nos Estados Unidos, primeiro como professor de literatura francesa, a partir de 1947, depois no estudo das relações entre a literatura e a antropologia religiosa na Universidade John Hopkins, em Baltimore (1957) e por fim em Stanford, a partir de 1980. Duas obras irão abrir caminho ao interesse que logo começa a suscitar a sua reflexão, apesar das desconfianças de quem não lhe reconhecia competência antropológica: «Mensonge Romantique et Verité Romanesque» (Grasset, 1961) e «La Violence et le Sacré» (id., 1972). Natural de Avinhão, filho de um conservador da Biblioteca e do Museu do Palácio Papal, radical-socialista e anticlerical, e de uma católica conservadora dada à leitura, o jovem começou por estudar as referências literárias à vaidade em Stendhal e ao snobismo em Flaubert e Proust, procurando reequacionar o destino do desejo humano, através de diversas obras literárias, com destaque ainda para Cervantes e Dostoievski. Tratava-se de tentar compreender o funcionamento das nossas sociedades, a partir do desenvolvimento humano e da sua lógica profundamente patológica. Afinal, o homem é desejo, mas não desejo de um objeto pela sua função ou utilidade, sim um desejo daquilo que o outro possui. A relação envolve, por isso, três elementos: eu, o outro e o objeto. Daí a rivalidade que leva ao antagonismo e finalmente à violência. Por isso, Girard salienta que nas condições sociais do tempo presente, há uma divergência fundamental aos olhos de hoje, entre as religiões arcaicas e a judaico-cristã. Onde as religiões arcaicas criavam um bode expiatório, que encarnava o mal, cujo sacrifício permitiria a reconciliação das massas, o cristianismo proclama a inocência da vítima – Jesus Cristo. Aqui está a originalidade da reflexão do pensador que procurou uma saída para o enigma da conflitualidade humana.
Ao contrário daqueles que referem a Paixão de Cristo como um mito entre outros, René Girard afirma a singularidade e a essencialidade da revelação cristã. Esta não só rompe a lógica negativa da «violência mimética», que encontramos nos mitos arcaicos, mas também revela o substrato de toda a cultura humana – e assim o sacrifício ligado à Revelação e à proclamação do amor, apazigua as massas e tem uma função unificadora da sociedade. A teoria mimética permitiria esclarecer não somente a construção do desejo humano e a genealogia dos mitos, mas também a violência presente, a espiral infinita do ressentimento e da cólera.
«Hoje, não precisamos de ser religiosos para sentir que o mundo está numa incerteza completa» (dizia o pensador). Daí ter considerado que os atentados do 11 de Setembro de 2001 tinham sido uma trágica manifestação do mimetismo, agora globalizado. No entanto, a comunidade científica foi olhando com muita desconfiança a tentativa de René Girard de explicar do mesmo modo desde os sacrifícios dos astecas até aos ataques do ISIS (Estado Islâmico). A originalidade deste pensamento é indiscutível e as pistas que lança merecem uma especial atenção crítica. No fundo, é a outra luz que se analisa o movimento de «desencantamento» referido por Max Weber (ou por Marcel Gauchet) – que aparece como um caminho que se desenvolve entre a resposta arcaica e a superação judaico-cristã. Chegou mesmo a dizer-se que enquanto Claude Levi-Strauss tinha encontrado uma resposta estrutural para todos os mitos, exceto para os europeus, René Girard teria encontrado uma resposta universal, baseada numa explicação centrada no cristianismo. Inserindo este num percurso moral e cultural da humanidade, o escritor de «Des Choses Cachées depuis la Fondation du Monde» (1978) encontra nesse caminho a explicação fundamental: «o sagrado aparece com o sacrifício, que é a expulsão ritual do inimigo: enterramos a vítima nas fundações da cidade e o pacto social ameaçado renovar-se-á, tantas vezes quanto necessário pela proscrição do inimigo, a qual será tanto mais económica se for ritualizada. Com efeito, em condições normais, vale mais entregar à ira pública um bode expiatório do que arriscar uma guerra ou do que lançar massas contra outras massas».


