Em Busca de Ideias Contemporâneas

Que Sociedade?

Folhetim de Verão “Em Busca de Ideias Contemporâneas” – capítulo 17

Foi preciso acontecer Budapeste em 1956, haver as revelações de Kruchtchev sobre o estalinismo e o Arquipélago de Gulag de Alexandre Soljenitsine para obrigar os anti-estalinianos a aprofundar a sua crítica, sem se preocuparem em salvar uma ortodoxia. Continuamos a seguir a análise de Jean-Marie Domenach. Claude Lefort foi um dos primeiros a tomarem consciência, desde antes de 1956, da singularidade monstruosa do fenómeno totalitário e deixam de o identificar como um resíduo do argumento do grande capital. Lefort chegou a uma conclusão semelhante à de Rosanvallon (que era também a de Mounier), e que era a seguinte: o marxismo irmão gémeo do liberalismo traz consigo a lógica bífida do Estado totalitário que leva tanto ao estalinismo como ao fascismo. É por erro que os marxistas fazem do Estado o produto de uma evolução económica e de uma relação de classes: é o Estado que abre o caminho, o símbolo bulímico que absorve a substância inteira da sociedade. Mas por que razão demorou tanto tempo para que abrissem os olhos? Lefort e muitos outros como ele viram-se violentamente contra aqueles que os impediram de ouvir a lição dos grandes liberais, de H. Arendt em particular. Nos dias de hoje, o fenómeno sofre alterações. Mas, no essencial, aumentam os riscos resultantes da lógica iliberal, que põe em causa a democracia.

Mudar a vida não significa mudar de mestre ou de proprietário, mas mudar a relação de si para si e com as coisas; no fundo, delinear aqui e agora uma sociedade alternativa e de pessoas autónomas. A revolução será ontológica ou não será. O que descobrimos, em suma é uma verdade que o fundador da sociologia francesa E. Durkheim já concebera – o elo social mais duradouro é o que tem natureza religiosa. Porém, a religião libertou-se da sociedade e tornou-se uma questão privada. Contudo, realizando-se, o cristianismo regressou à sua autenticidade, depois de ter servido abusivamente de caução a diversos regimes monárquicos e autoritários. Mas não é somente ao distinguir Deus de César que o cristianismo se dissocia das hierarquias políticas, é propagando a ideia de uma igualdade fundamental entre os indivíduos que passam a ser tratados igualmente que se afirma. Livres e iguais, eis a divisa que adotamos no presente. Já a consideração de fraternais é outra questão. A fraternidade determina relações interpessoais mais fortes de confiança mútua e de convivialidade. Ivan Illich disse: “A sobrevivência da raça humana depende da sua redescoberta enquanto força social”. Ao contrário dos hegelianos e dos estruturalistas, Cornelius Castoriadis não pretende o saber absoluto. Para ele esse conceito é absurdo, uma vez que o pensamento não deixa de enquadrar novas realidades. Não aceitamos nem uma progressão linear nem sínteses prematuras, mas a compreensão da hermenêutica (como diria Paul Ricoeur), enquanto reinterpretação a partir de manifestações do ser estratificadas. Assim, celebrar a passagem do homo sapiens para o homo computans oculta a verdadeira questão que temos de assumir, que é: como mudar a nossa relação com o saber e o poder? E Cornelius Castoriadis sublinha o paradoxo das instituições. Estas só se realizam na história, mas uma vez realizadas procuram parar a história. O certo é que uma sociedade consciente de si mesma, apresenta-se simultaneamente como instituída e instituinte. De facto, somos os que têm como lei, fazer as suas próprias leis… E assim define-se o socialismo como “uma organização da sociedade que permite aos homens definirem eles mesmos o sentido que querem dar às suas vidas”. A sociedade produz-se através de conflitos e avança às apalpadelas. E Castoriadis dá como solução a seguinte: com a fragilidade da instituição dessacralizada, esta recupera essa legitimidade através de um dinamismo criador. Instituindo-se a ela mesma, a sociedade concilia a liberdade e o poder, legitimando o que de outro modo se torna injustificável. Se a autoridade resiste a ser revelada enquanto arbitrária, a sociedade autónoma não o receia. Daí a importância do conceito de autoinstituição da sociedade. Descartes dizia que a liberdade é a única qualidade pela qual um homem merece ser estimado, a única pela qual merece ser obedecido e respeitado. Mas onde encontrar uma referência? Ao céu dos valores ou na natureza humana? E donde vem essa energia de futuro? Da língua? Da história? De uma alma coletiva? Colocando-o à frente, atrás ou na base, é preciso um fundamento. Como substituir um Estado produtivista por uma sociedade convivial? O individualismo e o igualitarismo são irmãos gémeos e inimigos, mas só a autonomia como autoinstituição pode respeitar a diferença. Recordar a metáfora de George Orwell em “Mil Novecentos e Oitenta e Quatro” significa, no fundo, valorizar a autonomia e a dignidade humana, como verdadeira marca da liberdade…

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